quarta-feira, 13 de fevereiro de 2008

Um homem comum. Mijão, porém comum


Kazumi era um homem comum. Nascido no Japão, mas morando no Brasil havia vários anos. Em São Paulo, no bairro da Liberdade. Os pais, velhinhos, moravam com ele, na casa que ficava no fundo do modesto botequim, seu meio de vida. Como filho mais velho, coube a ele cuidar dos pais, quando envelheceram. Dos pais e do botequim. Assim era a tradição. Os dois irmãos mais novos, que puderam estudar, permaneceram no Japão, casaram-se, formaram famílias. Ele não. Tinha só os pais, velhinhos, e o botequim. De resto, era um homem comum.

Kazumi falava um português nipônico com sotaque muito carregado. Afinal, só precisava do português para conversar com os fornecedores de bebidas e cigarros. Com a freguesia podia falar em japonês mesmo. Podia, não; era obrigado, pois falavam em japonês com ele. Tinha dificuldade para pronunciar o som da letra L – dizia “ére” – e tinha grande dificuldade com as consoantes frouxas, que não eram seguidas por vogais. Por isso a cerveja Antártica, no bar do Kazumi, chamava-se Tátchica. Ele também tinha Borama e Kaisa, e a mais vendida, a Sikoru. A cerveja gelada era a companheira ideal do camarãozinho na bosta, frito inteiro, com patas, casca e cabeça, apenas passado no creme de fazer tempurá. Os fregueses, praticamente todos descendentes de japoneses, gostavam do camarão frito de Kazumi.

Afora o sotaque, Kazumi era um homem comum, de seus quarenta e tantos anos, dono de um modesto botequim comum. Por isso estranhou quando aquele trio de brasileiros – pelo menos pareciam brasileiros – sentou-se na única mesa do bar. A maioria dos fregueses, conhecidos de muitos anos, preferia ficar no balcão para trocar um dedo de prosa. Em japonês.

Os caras chegaram mais ou menos à uma hora da tarde, e queriam saber o que tinha para o almoço. Ora, o que tinha para o almoço! Era claro que não eram fregueses, pois estes nunca perguntavam o que havia, já que a comida era feita na hora. Tinham de dizer o que queriam.

– Tá vendo a diferença, Rodrigues? – Disse o de barba. – Eles fazem a comida na hora que você pede, não é nada requentado, não é “self service ao perdigoto”. É comida feita na hora.

– Também! Não precisam cozinhar! Eles comem o peixe cru!

– Mas você não precisa pedir peixe cru, que eu também não gosto muito. Tem o sushi...

– Sushi non faz – atalhou rapidamente o Kazumi.

– Ah, mas tem yakisoba, que parece macarronada com vegetais, tem o tempurá, que é uma delícia, tem peixe frito, aquele arroz grudadinho, os mais diversos vegetais com tempero adocicado, gergelim e vinagre de arroz, uma delícia. Não tem nada a ver com esses restaurantes japoneses modernos. Aqui é comida japonesa do dia-a-dia. Os restaurantes japoneses modernos têm como maior atrativo o sushiman, que faz o sushi na hora, na sua frente, mas...

– Sushi non faz – repetiu Kazumi preocupado.

Se os fregueses insistissem no sushi, ele teria de ir buscar nalgum vizinho as algas pretas que servem para enrolar a massa de arroz. E Kazumi não se considerava um bom sushiman. Bons nessa tarefa são os cearenses, como se pode observar em muitos restaurantes japoneses de São Paulo. – Sushi non faz – insistiu ele mais uma vez, com aspecto sério.

– Tudo bem, nós não queremos sushi. Acho que vou querer um yakisoba com shiitake e uma boa porção de tempurá. Tem camarão?

– Craro! Camarô bom! Camarô tempurá! Bom! – Disse feliz o Kazumi, que finalmente poderia oferecer ao freguês sua especialidade.

– E peixe frito, tem? – Perguntou o Rodrigues.

– Peixe furito tem. Non tempurá. Só assim furito.

Rodrigues não entendeu direito, mas pediu assim mesmo, com uma porção de arroz. Aí o César, o terceiro elemento, abriu pela primeira vez a boca para exibir toda sua sabedoria:

– Ô Carlinhos, você que conhece o homem, pede logo para ele trazer um pouquinho de cada comida e a gente vai experimentando.

– Eu não conheço não. Só vim aqui uma vez. Mas a comida é decente. E a cerveja é bem gelada.

A sabedoria cesária prevaleceu e Carlinhos tratou de explicar ao Kazumi o que a moçada queria. Kazumi pareceu feliz com o pedido. Muitos pratos que ele sabia preparar nunca eram pedidos. Agora teria oportunidade de exibir seus dotes culinários, apresentando a cozinha japonesa para uns brasileiros meio estranhos, mas que pareciam ser gente boa. Já na cozinha, que consistia em um balcãozinho e um grande tacho em formato de calota de Fusca antigo na outra ponta do balcão, Kazumi estica o pescoço e fala para os fregueses: – Sushi non faz. – Só para ter certeza.

– Tá bem, sushi non faz. Traz uns saquês para a gente de aperitivo.

– O meu, quente, faz favor – pediu Rodrigues.

– Ué! Você conhece saquê?

– Ah, meu caro, você não conhece meu passado. Já nadei de braçadas nessa cultura oriental. Tive até uma namoradinha japonesa!

– E ela bebia muito saquê?

– Não, não bebia nada. Mas era quente...

Kazumi ficou feliz ao ouvir as risadas. A piada ele não ouviu, mas freguês que ri na mesa é bom sinal, bebe bastante cerveja. A tarde prometia.

Tirando a Galvão Bueno e umas outras poucas ruas com mais comércio, a Liberdade era um bairro calmo. Nas tardes de calor Kazumi freqüentemente cochilava no balcão, esperando algum freguês que viesse comprar cigarros. Pouca gente passava na rua. Carros, sim, mas pessoas a pé, que pudessem pelo menos cumprimentá-lo, abaixando a cabeça e dando um sorriso, mesmo sem entrar no botequim, eram raras. Aquela tarde decerto seria mais animada.

Kazumi escolheu os copinhos mais bonitos para os saquês. Dois redondinhos de porcelana para os gelados e um quadrado, laqueado, para o morno. Gostou de ver quando Rodrigues insistiu para que os companheiros experimentassem o saquê morno no seu próprio copo. E todos riram da dificuldade que César teve para abordar um copo quadrado com uma bebida desconhecida que ele imaginava estar muito quente.

– Vai no cantinho – disse Carlinhos.

– Ah-ah-ah, no cantchinho – riu Kazumi.

– Não é assim? – perguntou Carlinhos.

– Hai! No cantchinho! Hai!

É, a tarde prometia. Os brasileiros eram simpáticos, alegres. Iam beber muita cerveja, rir muito e Kazumi ia se divertir. Ou talvez não. Talvez ficassem no saquê como aperitivo, almoçassem e depois tomassem um chá na hora de ir embora. Ah, não! Kazumi ia usar de toda sua ciência para segurar os fregueses um bom pedaço da tarde. Precisavam beber cerveja. Afinal, a cerveja era o que dava mais lucro no botequim. A comida era barata e o ganho era pequeno. E desde que a Abadia foi-se embora, o movimento andava fraco. Era bom ter uma companhia alegre para a tarde, mesmo que fosse a de desconhecidos.

Rapidamente pegou um fogareirinho de mesa, que não usava desde muito tempo atrás, botou uma panelinha com água já quente sobre o fogo e levou aceso, com a garrafa de saquê morno em banho-maria. E pegou mais dois copinhos laqueados quadrados, daqueles que fizeram sucesso. Os caras gostaram. Voltou para a cozinha e rapidamente fritou um punhado de cogumelos shiitake na manteiga. Eram um ótimo tira-gosto. Deu certo. Antes mesmo que começasse a levar mais comida para a mesa a garrafinha de saquê esvaziou. Mais uma garrafinha, agora acompanhada de pedacinhos de peixe frito. Costumam chamar isso de isca de peixe, mas Kazumi sabia muito bem que isca de peixe era minhoca, porque aos domingos ele ia se divertir num pesque-pague da periferia. E ele jamais serviria minhocas para os fregueses. A menos que insistissem. Tempurá de minhoca. Kazumi riu de suas idéias atrapalhadas.

A segunda garrafa de saquê morno reforçou o calor que fazia naquela tarde, por isso não esvaziou. Mas os pedaços de peixe frito sumiram rapidamente. Assim que levou o primeiro prato – gamelinhas de missoshiru, a gostosa sopinha de massa de soja com pedacinhos de tofu, mais uns mariscos que Kazumi achava essenciais, e cebolinha verde picada por cima – Kazumi percebeu que o consumo de saquê havia caído. “É a hora!”, pensou, e ofereceu:

– Tátchica, Borama, Kaisa, Sikoru?

Silêncio. Os três fregueses ficaram paralisados, com os palitinhos no ar. Mas durou pouco o susto. Carlinhos rapidamente compreendeu:

– E aí, vamos tomar uma cerveja? Qual está mais gelada?

– Tudo djerado. Bom djerado.

– Que marcas você tem? – perguntou maliciosamente César, só para ouvir novamente a frase misteriosa. Rapidamente Kazumi recitou seu mantra:

– Tátchica, Borama, Kaisa, Sikoru – desta vez sem interrogação.

As três primeiras, tudo bem, mas a Sikoru pareceu a César ser uma marca estranha, provavelmente japonesa. E ele achava que precisava conhecê-la.

– Essa última aí. Eu quero dessa última.

– Sikoru, hai.

– É. – confirmou César. – Sikoru Hai.

– Ué, você bebe Skol? – estranhou Rodrigues, que achava que se podia conhecer o caráter de uma pessoa pelo que ela bebia. E César tinha todo o jeito de quem bebia Brahma.

– Não, eu pedi essa Sikoru Hai.

– É Skol!

– Não, deve ser alguma marca japonesa.

– É Skol, cara. Sikoru, em japonês!

– Sikoru, hai. – assegurou Kazumi, que aguardava a decisão dos fregueses.

César, ainda em dúvida, perguntou diretamente a Kazumi:

– Essa Sikoru Hai é a Skol?

– Hai! Sikoru, hai! Redôôôôônido! – respondeu Kazumi sorridente, enquanto fazia um giro com o indicador.

Novas gargalhadas, vai Skol mesmo, quem sabe agora está boa, se estiver gelada é boa, gelada em cima da mesa até minha sogra é boa, mais risadas... Agora a coisa estava indo bem. Hora de levar a cerveja e o yakisoba, que todo mundo gostou. A manteiga da fritura do shiitake estava ainda no fundo da enorme calota de fusquinha antigo, de modo que deu um saborzinho todo especial aos legumes coloridos que cobriam fartamente o macarrão. Kazumi estava feliz. Os fregueses estavam gostando da comida e da bebida. Do serviço, ele nem se lembrava, porque isso era obrigação. Mas gostava de ouvir um elogio à comida, o que era muito raro, desde o tempo da Abadia. Ela gostava muito da comida que Kazumi fazia. Comia bastante.

Maria da Abadia era uma goiana de seus vinte e poucos anos que Kazumi contratara como garçonete alguns anos antes. Não era nenhum espetáculo de mulher, embora não fosse feia, mas tinha certos atributos que faziam muito sucesso entre os moradores da Liberdade, sobretudo os mais velhos. Sorridente, educada e calada, vestia-se com simplicidade e discrição. Seu uniforme era um vestido cinza claro, reto, abotoado na frente, e comprido até a altura dos joelhos. Parecia um guarda-pó. Por cima do vestido, um avental branco. E era aí que morava o perigo. As tiras do avental, quando amarradas, faziam com que o vestido modelasse o corpo de Abadia e revelasse a diferença de potencial entre a fina cintura da moça e seus portentosos quadris. Quem conhece eletricidade sabe que diferença de potencial é o mesmo que voltagem, tensão. Alta voltagem, no caso. Alta tensão.

Os velhinhos, que eram maior parte da freguesia, ficavam no balcão tagarelando em japonês e calavam assim que a moça se dirigia para a “cozinha” para buscar uma cerveja no balcão refrigerado que ficava no fundo do botequim. Eram uns dez passos, se tanto, mas muito bem pisados, modulados pelas nádegas da moça, que deslizavam por debaixo do vestido. Os velhinhos paravam de beber, paravam de falar, paravam de rir e alguns até de respirar, com medo que a mais tênue brisa pudesse romper o encanto da cena.

– Badjia! Sikoru!

E lá ia ela buscar a cerveja, para o deleite de todos os olhos apaixonados pelos encantos de Abadia. O movimento das cadeiras de Abadia fazia crescer o movimento do botequim. Os velhinhos não tinham nada para fazer e vinham todos ver Abadia andar. Só andar, nada mais. Ficavam todos sorridentes quando ela andava; não diziam palavra, e davam mais uma bicadinha na cerveja. Blim-blim na caixa registradora, tum-tum-tum afobado no peito de Kazumi. É Kazumi também era apaixonado pela Abadia. Paixão, amor, tesão, sabe-se lá. Ele nunca soube ao certo. Nem ela. Mas que se casaria com ela, se pudesse, casaria. Ele era solteiro, aliás, muito solteiro, solteiríssimo, no mesmo estado que nasceu. E olha que já tinha nascido havia mais de quarenta anos. Casaria com ela, sim, se tivesse tido tempo.

Ela morava na casa, com ele e os pais, mas tinha seu próprio quartinho com banheiro. Kazumi jamais teve qualquer intimidade com Abadia. Nunca a espiou pelo buraco da fechadura. Nem lhe dirigiu qualquer palavra mais atrevida. Nem conversou com ela sobre coisas que não dissessem respeito ao botequim. Apenas ria vaidoso quando ela dizia que ele cozinhava bem. Ele cozinharia para ela o resto da vida, se tivesse tido tempo. Mas não teve.

Um dia apareceu por lá um sujeito vindo de Minas Gerais, Abadia ficou toda agitada, saiu detrás do balcão e abraçou o sujeito como se fossem velhos conhecidos. E eram. Conversaram por quase uma hora na calçada – e a venda de cerveja caiu tremendamente naquela tarde, pois todos os fregueses estavam olhando para a calçada. Se não tinha Abadia andando atrás do balcão, ninguém pedia cerveja. O andar de Kazumi não era a mesma coisa. No dia seguinte, logo cedo, Abadia arrumou a malinha e foi-se embora com o sujeito.

Não era hora de ficar triste lembrando da Abadia. Os fregueses já estavam terminando o yakisoba e estava na hora de levar o arroz. Uma panelona elétrica, que foi plugada numa tomada da parede, e três tigelinhas. E em seguida os peixes, estalando em cima das chapas quentes, cobertos de legumes. E tome Sikoru djerado. Bom djerado!

Enquanto os caras comiam, bebiam e riam, Kazumi continuava na cozinha preparando outras comidinhas. Trouxe uns rolinhos de acelga semi-cozida recheada com pedacinhos de kamaboko frito. O kamaboko, uma espécie de salsicha de peixe, fez grande sucesso, então kazumi os serviu em fatias, salpicados com sementes de gergelim torradas e shoyu. Mais Sikoru.

A certa altura da festa, um dos brasileiros chama o Kazumi, pergunta seu nome e começa a conversar. Poucos minutos mais tarde já havia quatro companheiros na mesa bebendo cerveja. Kazumi nunca tinha feito uma farra daquelas. E tome cerveja. Sikoru. Aí o Rodrigues começou a contar de sua experiência no seio da colônia japonesa. No seio, nas coxas, na cinturinha, uma delícia de experiência. Kazumi ouvia comovido, porque o Rodrigues, já tocado pelo álcool, falava como se a ex-namoradinha fosse a jóia mais preciosa que ele já tivera nas mãos e deixara escorregar por entre os dedos. Coisa de bêbado.

Como costuma acontecer entre amigos tocados pelo álcool, as emoções de um suscitam as lembranças dos demais. E tome cerveja. Enquanto César contava uma de suas desventuras amorosas, Kazumi levantou-se para fritar camarõezinhos passados no creme de tempurá. E os trouxe para a mesa, com mais Sikoru, exatamente quando César cai no choro. Era a vez de Carlinhos, que também tinha perdido um grande amor. Todos perderam um desses. E quem não perdeu, com umas tantas cervejas na cabeça, inventa na hora um grande amor perdido. Alguns até fazem músicas sertanejas. Sobretudo porque os interlocutores também estão mamados, não estão atentos a detalhes. E tome Sikoru. Kazumi também já estava ficando alto e então contou a história de Abadia.

O chorão César, debruçado sobre a mesa, levantou a cabeça assim que Kazumi começou a falar. Foi ele o que mais se envolveu com a história. Mas foi Rodrigues quem arriscou uma pergunta tendendo para a sacanagem: “mas não rolavam nem uns beijinhos?” Kazumi nem respondeu. Continuou a história deixando claro que sempre teve o máximo respeito pela moça. Quando chegou no fim, a malinha pronta logo de manhã e o cara de Minas vindo buscá-la, foi um choro só. A cena doeu. Choravam os quatro. E tome Sikoru.

Anoiteceu, Kazumi baixou a porta do botequim, e voltou para a mesa onde estavam seus agora amigos. E tome Sikoru. Quando começava a sentir um pouco de tontura, Kazumi se levantava, fritava mais uns camarõezinhos e voltava para a mesa, com mais duas garrafas. A conversa tinha voltado a ser alegre, contaram-se piadas, explicaram todas a Kazumi, riram muito e tomaram mais cervejas. Foi Rodrigues, e não Kazumi, quem se levantou para colocar mais garrafas na geladeira. E mais tarde Kazumi deu sua receita secreta do creme para tempurá enquanto ensinava Carlinhos a fritar camarões. César estava no banheiro.

Altas horas, ninguém sabe quantas, um dos quatro resolve que precisam ir embora. Pedem a conta, mas Kazumi não faz a menor idéia de quanto seria. Carlinhos resolve contar as garrafas de cerveja. Enquanto estiveram lá, desde a hora do almoço, Kazumi não chegou a vender uma dúzia de cervejas para outros fregueses, então a turma resolveu assumir que todas as garrafas vazias foram bebidas por eles. Pagaram inclusive o que Kazumi bebeu.

– Comida non! – Exclamou Kazumi.

A comida era por conta dele. Valeu o prazer de eles terem gostado. Saíram os quatro, Kazumi fechou por fora a porta do botequim e foram procurar um táxi, Kazumi com eles. Pegaram o caminho errado e, quando perceberam já estavam no viaduto, em cima da 23 de Maio.

– Vou dar uma mijada – disse Carlinhos.

– Aqui? – perguntou assustado o Rodrigues.

– A esta hora, que é que tem?

– É, acho que tudo bem.

Quatro marmanjos bêbados, em plena madrugada, mijando do alto do viaduto Jaceguai nas pistas da 23 de Maio. Kazumi, que nunca fez coisas erradas na vida, ria a ponto de estourar enquanto urinava nos carros que passavam na avenida lá em baixo. Mijava-se de rir e ria de se mijar. Nunca, em seus mais de quarenta anos de idade, tivera uma alegria tão intensa. Nem uma festa tão intensa. Nem sentimentos tão intensos. Nem uma bebedeira tão intensa.

No outro dia havia quatro cabeças estourando de dor. E muita sede. Foi Rodrigues quem, no fim da tarde, ligou para o Carlinhos. Eles achavam que deviam dar uma passadinha no botequim do Kazumi para ver se o amigo estava bem. Parecia claro para eles que o sujeito não estava muito acostumado com a bebida. Além disso, logo depois da mijada homérica, pegaram um táxi e deixaram Kazumi lá, tendo de voltar para casa sozinho. Convocaram César e foram os três até o botequim na Liberdade.

Encontraram a porta fechada e alguns velhos moradores do bairro na calçada conversando – em japonês. Céus! O pensamento que passou pela cabeça dos três foi o mesmo: “Matamos o Kazumi.” A primeira idéia de Carlinhos foi de irem embora e voltarem num outro dia, depois de passada a comoção, para se inteirarem de como foi o ocorrido. Mas Rodrigues disse que isso seria uma covardia. Se eles foram os responsáveis, tinham de assumir sua culpa. Desceram do carro e chegaram, devagar, perto de dois velhinhos que conversavam baixinho.

– Boa tarde – iniciou Rodrigues. – O Kazumi... ?

– Hodje non ábore baru. – respondeu um tanto secamente um dos anciãos.

– Mas o que aconteceu com o Kazumi? – foi mais direto o Carlinhos.

– Kazumi non tá. Baru non ábore hodje.

– Não tá? Então onde ele está?

– Kazumi pureso.

– Preso? Na delegacia?

– É. Deregacia. Pureso.

Os semblantes dos três amigos se iluminaram. Kazumi não estava morto, estava apenas preso! Iriam agora mesmo à delegacia saber o que houve. Ele não estava morto! Iam conversar com o delegado.

– Peraí, e se for algum lance de contrabando ou de drogas? A gente aparece lá perguntando pelo Kazumi e vira suspeito. Podemos até ficar presos!

– Pô, Carlinhos, – interveio César – você acha que o Kazumi pode estar metido em algum rolo desse tipo? O Kazumi? Se ele nem olhou pelo buraco da fechadura para ver a Abadia trocando de roupa, ia se meter com o crime organizado?

– Mas ele é bem organizado; você viu que mesmo bêbado ele fritava os camarões direitinho.

– Você também fritou quando estava borrachão.

– É, mas sob a supervisão dele.

– Pára, gente! – interrompeu Rodrigues. – O cara frita camarão desde que nasceu, isso não tem nada a ver. Precisamos ver o que aconteceu com ele, saber por que ele está preso. Claro que não é tráfico. Mesmo contrabando, se for é coisa pequena. A polícia só quer saber quem são os grandões, peixe miúdo não interessa. – E os três se lembraram do peixinho frito, logo no começo da farra.

Mais uma vez, foi César quem trouxe a idéia. Um deles iria conversar com o delegado para saber o que houve. Se não ligasse para os demais até duas horas mais tarde, os outros iriam atrás do primo do César, que era advogado, para preparar um habeas corpus ou qualquer coisa que servisse para tirar alguém da cadeia. Só faltava decidir quem ia ser o herói. O próprio César se ofereceu. Ele iria, de bom gosto. Afinal, o advogado era primo dele. Sua única dificuldade é que se o delegado também fosse japonês ele poderia não entender qual era o problema. Carlinhos e Rodrigues assumiram a tarefa ao mesmo tempo. E combinação mudou. Iriam os dois e se nenhum deles telefonasse para César, este deveria ir à delegacia já munido de advogado e habeas corpus para todo mundo.

O esquema armado era bom, mas não foi necessário. Quando chegaram à saleta do delegado, os dois já viram Kazumi sentado no banco, de cabeça baixa, como quem havia levado uma bela carraspana. O delegado explicou que os policiais da patrulha o prenderam por atentado ao pudor, urinando na 23 de maio de cima do viaduto Jaceguay. Segundo o boletim de ocorrência, ele urinava “em leque” e fazia “tatatatatatá”, como se fosse uma metralhadora.

Já a caminho do botequim, Rodrigues dirigia, Kazumi ia calado – envergonhado, talvez – e Carlinhos explicava a César, pelo celular, que o japonês fora preso por terrorismo, pois estava metralhando carros na 23 de maio, de cima do viaduto. Enquanto Kazumi não chegava, César tentava explicar aos vizinhos que o cara estava bem e já estava chegando, mas parece que ninguém entendeu, ou não deu muita atenção.

Logo, porém, o carro parou na calçada e descem os dois amigos e Kazumi. Palmas, vivas, banzais, Rodrigues e Carlinhos viraram heróis. Parece que Kazumi era muito querido na vizinhança. Fizeram-no abrir o botequim para oferecer cerveja aos heróis. Mas eles já tinham bebido tudo que podiam para os próximos três meses. E o bar estava uma lástima, com comidas, pratinhos, pauzinhos, tigelinhas, panela, fogareiro e garrafas em cima da única mesa desde a véspera. O arroz, na panela elétrica, estava azedo, mas conservava-se aquecido. Boa panela. Um cheiro de fritura e cerveja azeda tornava difícil a respiração. Era melhor ir embora logo. Despediram-se de Kazumi, certificando-se de que ele estava bem, que não tinha apanhado nem sofrido algum tipo de violência física.

– Vem outro djia! – convidou Kazumi – Comida non paga, só Sikoru.

– Tá bem, a gente volta sim. Tudo de bom.

Já no carro, César, no banco de trás, começa a rir.

– Tava pensando no Kazumi na cadeia, 'tadinho.

– E acha engraçado? – repreendeu Rodrigues.

– É, imagina a cena. Ele ali, no chiqueirinho, com uns tantos meliantes e facínoras. Aí um sujeito do lado dele, sem camisa, todo cheio de tatuagens de caveiras com punhais cravados, pergunta, estranhando a figurinha do Kazumi: “qual é tua bronca, ô japonês?” E o Kazumi: “Buronca? Que buronca?” “É, meu, que tu fez pra estar aqui?” “Ahhhh! Midjón! Deu midjón na Bintch-torês.”


• Celso Paraguaçu •

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