sexta-feira, 21 de março de 2008

A falta da cabrita



— Eu não gosto de médico.

— Eu sei, mas é só um checape.

— Fiz um no ano passado e ’tava tudo bem. Isso é igual carteira de motorista, só tem de renovar de cinco em cinco anos.

— Mas não é para ver o coração, é outra coisa... Sua cabeça. Não está muito bem e pode ser o mal de Alzheimer.

— Você está delirando! Eu nunca escapei marcha!

— É, mas ontem, quando eu falava com a Ana Cláudia, você veio com uma conversa totalmente sem propósito. Pode ser um sinal do mal de Alzheimer e é bom ver isso logo, pois se pegar no começo o tratamento funciona.

— Conversa sem propósito? Vocês duas nem me deixam abrir a boca quando estão de prosa!

— É conversa de mulher, você não entende.

— O que vocês conversam de nível tão alto que eu não consigo entender?

— Muitas coisas. Ontem, por exemplo, estávamos falando de sinais; dos sinais que aparecem na vida da gente e nem sempre se sabe interpretar. Ela acredita nos sinais, mas acha que são as forças do universo que os põem à nossa vista. Eu acho que é Deus. A Lúcia tem certeza de que são os astros.

— A Lúcia não vale. Ela é pirada.

— Não é não. Ela é astróloga. E muito boa. Você devia respeitar mais sua filha.

— Eu respeito. Mas acho que ela é piradinha. Veja a Ana Cláudia: ainda é quase uma menina, mas tem a cabeça no lugar, sabe o que quer da vida...

— E vai se casar.

— Então... Quem? Quem vai se casar, a Aninha? Você está louca?

— Vai para a Alemanha e vai se casar.

— Mas como? É uma menina!

— Tem a idade que eu tinha quando nos casamos. E já é mais velha do que a Lúcia era quando se casou.

— Mas a Lúcia é uma pirada.

— Não é pirada não. É socióloga, competente, famosa, doutora. E também é astróloga, porque nós, mulheres, somos múltiplas. Você mesmo não diz que a lasanha da Lúcia é imbatível? E você acha que ela aprendeu a fazer lasanha na Sociologia ou na Astrologia? Não; é porque ela é mulher, é múltipla. É profissional, é mãe, é artista, é astróloga, é motorista, é dona-de-casa, é professora, é pesquisadora, é múltipla.

— Mas a Aninha vai se casar mesmo?

— É, ela conheceu um rapaz na universidade, um bolsista da Alemanha, e acha que identificou alguns sinas de que ele é o homem da vida dela.

— E por causa dos sinais, vai se casar.

— É. Vai terminar a universidade, vai se casar, fazer mestrado na Alemanha. Como você disse, ela sabe o que quer da vida.

— Ah! Eu pensei que ela ia se casar logo. Mas se vai esperar o fim do curso, vai ter de concorrer a uma bolsa de mestrado... ainda demora. E acaba nem se casando com o alemão. As moças são assim, se apaixonam, se desapaixonam... Coisas da juventude.

— Pode ser. Mas acho que desta vez é pra valer. Ela está muito impressionada com os sinais que diz serem uma expressão das forças do universo.

— Isso é influência da pirada da Lúcia! Aposto que ela fez o mapa astral do rapaz e disse que ele combina com a Aninha.

— Não é não. Eu não sei que sinais são esses que ela diz ter identificado, mas ela ainda nem falou com a mãe. Veio conversar comigo ontem porque sabe da nossa história, que a Lúcia contou para ela.

— Que história?

— Eu nunca lhe falei, mas quando vi você pela primeira vez, sabia que viveria com você até o fim de meus dias. Eu tinha recebido um sinal.

— De Deus?

— Eu acho que foi. E quero pensar que foi. A Lúcia acha que foram os astros e a Ana Cláudia diz que são as forças do universo. Mas eu prefiro pensar que foi Deus.

— E Deus disse que você ia casar comigo?

— Não é assim que a coisa funciona, Aurélio. Vocês, homens, são tão simplistas, tão infantis que chegam a irritar. Você acha que Deus chegou para Moisés e falou: “Anota aí, meu filho, os dez mandamentos da minha lei.” Não é assim. A gente tem de sentir que uma coisa é um sinal, tem de interpretar a manifestação divina. Não é tudo claro e simples. Bem, no caso do Moisés acho que foi, sim, porque ele era homem. Se os sinais fossem mais complexos talvez ele não entendesse.

— Vocês mulheres têm uma implicância com o raciocínio masculino...

— ’Tá, ’tá, deixa o Moisés para lá. Mas foi por isso que eu nunca lhe falei do sinal. Porque achava que você não entenderia. Com as meninas é diferente. Eu contei para a Lúcia quando ela era mocinha e ela contou para a Aninha. Elas entendem isso. Por isso é que gostam tanto de você. Elas sabem que estamos destinados a viver juntos até a morte.

— Mas que sinal foi esse?

— Eu não vou contar, porque você não ia entender e podia até ficar fazendo piada com algo que eu acho que é sagrado. É só para mim.

— E para a Lúcia, e para a Aninha...

— Para elas, sim; porque a felicidade delas pode depender disso, de interpretar corretamente um sinal, como eu fiz.

— Mas quando foi que você viu esse sinal?

— Ah, foi um instante antes de a gente se ver pela primeira vez. Eu levei um tremendo susto, mas depois senti que aquilo era um sinal.

— Você está falando daquela vez que a gente se encontrou naquele bar em que todo mundo ia, como chamava mesmo?

— O “Amarelo”. Mas foi antes. Quando a gente se cruzou no Amarelo eu já sabia que você era o homem da minha vida. O sinal foi antes, da primeira vez que a gente se viu, naquela estrada, quando meu carro saiu da curva e você veio me socorrer. Não se lembra?

— Lembro, você estava muito assustada, e como era bonita! Dizia que a curva da estrada estava cercada de caixões de defuntos, quase não conseguia respirar. Aí eu lhe dei um pouco de água, você se acalmou e foi embora. E na noite seguinte nos encontramos no Amarelo.

— É, e eu fiquei falando de mim o tempo todo. Duas semanas mais tarde, quando você disse que estava trabalhando temporariamente numa funerária, eu tive certeza absoluta de que minha interpretação do sinal estava correta. Era isso mesmo, você era o homem da minha vida.

— Mas e o sinal?

— 'Tá vendo? Eu falei dele e você nem percebeu. O sinal foi a curva cercada de caixões. Onde se poderia ver uma curva de estrada toda murada com caixões de defunto? Claro que eu me assustei. Era noite alta, eu sozinha numa estrada sem movimento algum, com medo de ficar com sono, e quando entro na curva vejo uma muralha de caixões de defunto, como não me assustaria? Mas depois que me acalmei e voltei para a estrada, compreendi que não havia caixão nenhum, que aquilo tinha sido um sinal de que estava próximo o instante de encontrar o homem com quem eu viveria até a morte. E encontrei você, que foi me socorrer. Não acha que foi um sinal?

— ...

— Não acha que foi um sinal?

— É, acho que sim, não sei. Pode ter sido. Eu não entendo dessas coisas. Bem, se você achou que era, então devia ser mesmo, né?

— Mas você não vai fazer piada com isso, vai?

— Não, claro que não. Eu respeito suas maluq... suas idéias. Se você acha que foi um sinal, então foi, pronto. Um sinal divino. E não se fala mais nisso.

— Eu estava contando essa história ontem para a Ana Cláudia. Ela já a tinha ouvido da mãe, mas quis ouvir de mim, para conferir cada ponto. Foi quando você interrompeu para falar alguma coisa sobre uma cabrita, por isso acho que você precisa ir ao médico, para ver se não precisa de tratamento.

— Ah, não! — disse Aurélio sorrindo. — É que tinha me lembrado de uma história e ia começar a contar a ela, nem tinha percebido que você estavam conversando sério. E a história era uma bobeira, acho que ela nem ia gostar. Coisa muito infantil. Não preciso de médico não.

E não precisava mesmo. Aurélio se lembrava perfeitamente de tudo que acontecera na véspera. Sua intervenção pouco clara fora: “Faltou uma cabrita”. As mulheres não entenderam e ninguém entenderia mesmo. Mas Aurélio estava seguro de que tinha faltado uma cabrita.

A cena toda jamais saiu de sua cabeça. Só não contara para a mulher porque não queria ser acusado de quase tê-la matado de susto. E quem sabe se não foi mesmo o destino quem armou tudo? O destino, as forças do universo, os astros, Deus, sabe-se lá. Mas, quem quer que tenha sido, contou com a pequena ajuda do Samuel, que não sabia fazer uma cabrita.

Samuel trabalhava na marcenaria que fabricava urnas funerárias. Aurélio viera buscar uma carga para a funerária na qual trabalhava, mas não queria carregar o caminhão. Ele era motorista, carregador não. Deixou o caminhão parado na fábrica e foi jantar no Garrote de Ouro, enquanto Samuel e os companheiros faziam a carga caprichosamente.

A noite clara de lua dava uma boa garantia de que não vinha chuva. Não precisariam cobrir a carga com a lona. Caixões empilhados, encaixados, seguros, restava apenas amarrar a carga. E aí estava o busílis. Samuel era bom carregador, mas não sabia amarrar a carga. Passava a corda nas posições mais recomendadas, mas na hora de apertar a amarração, Samuel era um fracasso. Por nada deste mundo era capaz de fazer uma cabrita. E morria de vergonha disso.

A cabrita é um recurso usado pelos caminhoneiros para apertar a amarração das cargas. Se descerem com a corda e simplesmente a amarrarem num gancho da carroceria, a carga se movimenta no primeiro buraco e a corda se afrouxa. Por isso é preciso apertar a amarração com a cabrita. Faz-se um olho – ou uma orelha, depende de quem faz – a meia altura entre o alto da carga e o gancho, passa-se a corda pelo gancho e sobe-se novamente para o olho. Ou orelha. Ao ser passada pelo olho, a corda forma um laço e pode ser esticada ao extremo. O amarrador pode usar o peso do corpo para esticá-la. Aí sim a corda pode ser amarrada no gancho. Mas Samuel não sabia fazer a cabrita.

Por isso se afastou discretamente quando viu Aurélio chegando, com um palito na boca e acariciando a barriga satisfeito. O motorista pegou a nota fiscal, entrou no caminhão e partiu sem conferir a amarração da carga. As lombadas e valetas da cidade foram suficientes para afrouxar a corda . Aí foi só entrar na rodovia e, na primeira curva, ver os caixões deslizarem pela tangente e se espalharem no acostamento.

Felizmente havia um barranco, no qual os caixões que rolavam pararam. Ao ver a confusão, Aurélio entendeu que, mesmo depois de um lauto jantar, teria de assumir a função de carregador de caminhão. Ia suar um bocado, só porque o Samuel não tinha feito a cabrita. A corda era testemunha de que não fora feita uma cabrita.

Parou o caminhão mais à frente, bem depois da curva, e voltou para recolher os caixões. A melhor estratégia era juntá-los e depois aproximar-se com o caminhão. E só havia uma forma de reunir todas as urnas: apoiá-las no barranco, já que o acostamento era estreito. Assim Aurélio foi revestindo a parede do barranco com as urnas colocadas em pé, lado a lado.

Ao se afastar para pegar o caixão mais distante, percebeu, pelos faróis, que algum motorista se perdera na curva. A luzes iam para cá, para lá, até que o carro saiu da pista e entrou no pasto. Passou pertinho dele. Quando o fusquinha parou – sim, era um fusquinha, o que vocês queriam? – ele foi ver se o motorista precisava de ajuda e encontrou aquele lindo par de olhos, muito arregalados.

A moça, pálida de susto, gaguejando, arfando, dizia que tinha visto uma muralha de caixões de defunto ao lado da curva. Ele pediu que ela esperasse um pouquinho, enquanto ia buscar água no caminhão. Quando chegou com a água, a moça já estava bem mais calma. Ela bebeu um pouquinho, agradeceu, sorriu – e que sorriso! – e disse ter tido a impressão de que havia uma muralha de caixões de defunto cercando a curva.

Aurélio baixou a cabeça, com o peso da culpa, mas nem precisou se desculpar, porque a moça repetiu que devia ter sido impressão. Melhor assim. Não precisava explicar nada. Ele sabia que não era impressão, era realidade. E sabia que tudo aconteceu por falta de uma cabrita.

Pode ter sido um sinal. Se ela preferia pensar assim, tudo bem. Mas ele sabia, sabe, e levará o segredo para a tumba: sinal ou não, faltou uma cabrita.

[Não avisei antes, como faz o cinema americano de televisão, porque funciona como um alerta para mudar de canal. Mas a verdade é que este "causo" é baseado numa história real.]

Celso Paraguaçu

quinta-feira, 6 de março de 2008

A lista de Schindler



Não fui ver o filme, quando passou anos atrás. Também não li o livro. Suspeito muito de coisas de que todo mundo está falando. Em geral, se cai no gosto da massa não tem qualidade. Massa não pensa, apenas vai na onda, vai para onde os demais estão indo, sem perguntar nada. Se a freguesa já viu algum filme que mostrava as movimentações dos rebanhos de animais nas savanas africanas, sabe como é a massa. Basta que um comece a andar, para que todos andem. E o movimento se torna uma gigantesca migração.

É difícil distinguir no meio da massa qual é o indivíduo que decide movimentar a manada. Parece ser aleatório. Não há um líder, com características especiais. Qualquer gnu que tenha resolvido procurar um capinzinho mais fresco, mais verde, sai andando à toa, olhando para o chão. Instantes depois, todos os buzilhões de gnus estão andando na mesma direção do primeiro. Ninguém quer saber por que ele resolveu andar naquela direção nem por que se afasta. Todos vão atrás. Alguns até o ultrapassam, porque massa não tem líder. Um minuto depois do início da movimentação da boiada não se consegue mais identificar quem puxou o samba.

O próprio iniciador da caminhada já mudou de objetivo. De início, ele só queria um capinzinho fresco, mas quando viu todo mundo andando naquela direção, segue a tropa sem se dar conta de que foi ele que iniciou o movimento.

Assim são as modas, coisas tidas como espetaculares, que todavia não resistem ao tempo. Nas roupas – sobretudo, mas não unicamente, femininas –, nos ritmos populares, nos cortes e cores de cabelo, nos filmes e livros. A freguesa deve se lembrar de quando se tornou moda um tipo de sambinha brega cantado por grupos que tinham um vocalista chorão, não? A cada esquina formava-se um novo grupo, que escolhia nomes “criativos” como Sambobagem, Agonia do Samba, Samboiola, Sambiscate, etc. Algum desses grupos sobreviveu? Alguém ainda ouve essas músicas? É possível que em algum canto da remota periferia sobrevivam alguns pagodeiros, como se chamavam. Mas deixaram de atrair a massa.

A menção à periferia deve-se à observação de que nos limites da cidade as modas sobrevivem por mais tempo. Em geral há fortes manifestações culturais trazidas de outras partes, sobretudo a sólida cultura nordestina, que abrange desde o norte de Minas Gerais até a das profundezas do Maranhão ou do Pará. As modas sobrepõem-se à cultura importada como um protesto dos adolescentes, que desejam firmar-se como pertencentes à cultura urbana de massa e não à de seus pais e avós. “Vocês são sertanejos deslocados”, dizem eles ao mostrar seu anacrônico gosto pelo pagode, por exemplo, “enquanto nós somos parte da massa urbana, que não tem cultura, é apenas massa.” Só abandonam a moda antiga quando chega alguma moda nova que sirva aos seus propósitos de protesto.

Em geral, adolescentes são massa. Vestem-se de determinado modo ou agem como se gostassem de certo tipo de canção para serem reconhecidos como parte integrante de um grupo. Quando se tornam adultos, porém, podem desenvolver sua individualidade e personalidade. Podem escolher se vão continuar como massa ou se vão desenvolver o espírito crítico. A maioria, ao que parece, prefere continuar sendo massa. Dá menos trabalho. Não é preciso pensar se é bom, se é agradável, se é correto. Basta acompanhar a manada, fazer o que todo mundo faz, sem pensar.

É por isso que fico ressabiado quando ouço muita gente elogiando alguma coisa. Pode ser um cantor, um livro, um filme ou um esportista. Se muita gente está falando bem, provavelmente estão indo na onda e a coisa elogiada não tem qualidade. Por isso não fui ver “A lista de Schidler” nem tive interesse em ler o livro. Tinha muita gente dizendo que era ótimo.

Outro dia, contudo, dei de cara com a lista de Schindler. Estava na minha frente, exposta e clara, para quem quisesse ver. Observei cuidadosamente e concluí que meus conceitos sobre cultura de massa continuam válidos. A lista de Schindler não tem nada de mais. É meramente uma sucessão de letras e números. Começava em 8, depois 7,6,5,4,3,2,1, SL, T e SS. Igualzinha à lista de Otis e de Thyssenkrupp ou de qualquer outro fabricante de elevadores.

• PGC •



Que aconteceu com a lua?



Depois do eclipse de que foi vítima em fevereiro, a lua não apareceu mais. O fenômeno não me teria (ôpa!) chamado a atenção, pois não fico olhando a lua. Tenho mais o que fazer. Contudo, um de nossos fotógrafos, autor das misteriosas fotos do eclipse publicadas nestas páginas (veja "À sombra da Terra", nas postagens mais antigas), insistiu em vasculhar o espaço em busca do “selênico corpo celeste”, nas palavras dele, que havia sumido.

Aqui no Meia-sola temos um princípio: “o autor que autoreie”. Em outras palavras: quem sugere a pauta que faça a reportagem. É incrível como diminuiu o número de pautas furadas depois da implantação desse princípio. Também diminuíram as pautas firmes, é verdade, sobretudo depois que o pauteiro se demitiu aos brados de “eu não vou fazer todas as reportagens, não vou mesmo! Vão para a pauta que os pautou!” Que se há de fazer? Ele não entende nada de pensamento empresarial em comunicações, de engenharia de recursos humanos, de eficiência administrativa, essas coisas.

O fotógrafo protestou, dizendo que não é redator, mas cedeu ao meu argumento de que depois que inventaram a internet, todo mundo virou repórter e fotógrafo. Para que meu argumento não ficasse com cara de ameaça, lembrei a ele o princípio da pauta (“o autor que autoreie”). Um tanto amuado, com o tripé numa mão e a sacola de equipamentos no ombro, lá foi ele buscar as imagens.

Eu poderia pedir para um repórter ligar para algum astrônomo das Sebosas, as sujas folhas de telefones de fontes que percorrem a redação, de mesa em mesa. O astrônomo poderia explicar por que a lua não estava mais no céu. Preferi não fazê-lo, porém, pois não estava certo do sumiço da lua nem saberia dizer o que muda aqui na Terra sem uma lua no céu. Como eu poderia orientar o repórter?

Honestamente, a mim pouco se me dá se a lua está lá ou não. A lua já não interessa mais nem aos poetas. E aos namorados muito menos, pois hoje em dia eles têm coisas mais curiosas para olhar. As moças usam tantas tatuagens que parecem historias em quadrinhos. Outro dia vi uma gordinha com o corpo tão cheio de desenhos que me pus a pensar: se ela emagrecer, será que vai melhorar a definição, vai borrar ou vai dar moiré? Quando essas moças tatuadas envelhecerem, as histórias em quadrinhos vão ficar amarrotadas...

Lua é coisa do passado, de quando demagógicos governantes do Leste e do Oeste queriam conquistá-la. Pois conquistaram. E mudou alguma coisa? Acabou a fome do mundo? Acabaram as tragédias naturais? Curaram as hemorróidas? Ou pelo menos inventaram alguma coisa menos ridícula do que essas almofadinhas com um buraco no meio que parecem um donut gigante? Nada. Os caras foram lá, constataram que a lua estava coberta de pó, voltaram algumas vezes, pegaram umas pedrinhas, mas nem sequer levaram espanador para tirar o pó. Porcalhões, todos eles, comunistas e capitalistas. Porcalhões.

Pois bem. Algumas horas depois o profissional chega da rua, senta-se ao computador e começa a escrever laudas e mais laudas. Ou telas e mais telas. Estou omitindo o nome do fotógrafo por motivos que ficarão claros. E afinal, ele já não pertence mais aos quadros desta empresa.

Como ele ainda não tinha passado as fotos para o computador, eu não quis atrapalhar. Parecia muito concentrado no texto. Da minha mesa, ouvi quando o teclado parou e julguei que ele estivesse transferindo as fotos, para editá-las. Era hora de eu ir dar uma olhada. Ocupando toda tela do editor de imagens, havia uma mulher quase nua, com um belo corpo, em pose considerada sensual.

— Gostou, chefe? — perguntou ele.

— Gostei. Quem é a ruiva? — era ruiva natural a moça. Ou era muito detalhista na coloração.

— Ué, a Celeste!

— E quem é a Celeste?

— A mulher que tinha desaparecido. Ela tinha ido para a Argentina fazer um “trabalho fotográfico”. Olha só que trabalho — e me mostrou outras fotos da moça, que só não estava nua porque vestia uma gargantilha. Bem fininha.

— Mas que negócio é esse de moça desaparecida? — perguntei. — Você me falou que ia vasculhar o espaço em busca da lua, que havia sumido. — e comecei a ler o texto que ele havia terminado. Estava cheio de termos como cachorra, preparada, safada, popozuda, e outros ainda mais cabeludos. De cabelos ruivos. Desculpe, freguesa. Enquanto eu lia, ele se desculpava:

— Eu não tenho nada com o sumiço da lua, chefe. Eu passei o dia todo aqui, não pus a cara para fora da porta até a hora que fui procurar a Celeste, porque eu tinha uma dica de onde ela poderia estar.

— Quer dizer que aquela conversa de “selênico corpo celeste”...

— Ô chefe, olha que corpão! Não é selênico?

— Selênico? Em relação à lua ou ao selênio?

— Qual é, chefe! Selênico em relação a esse material todo! Olha só! Isso é uma sereia! — aí caiu a ficha.

— Você quer dizer sirênico, relativo a sereia?

— É silênico?

— Não, é sirênico. De sirene, sereia.

— Ahn...

Com toda a fúria de editor traído, mandei que ele voltasse à rua para fotografar a maldita lua.

— Mas chefe... a lua não sumiu?

— Calado! — exclamei. — Vá fazer a foto! — disse-lhe apontando a janela grande. Eu não queria sugerir que ele saltasse pela janela; apenas não me acostumei ainda com a nova disposição das mesas, que a mulher do feng shui disse ser mais harmônica. Ainda bem que ele entendeu e entrou no banheiro. Ou melhor, saiu pela atual porta que dá para o corredor que conduz ao elevador. Não pela que tem a coisinha pendurada, o espelhinho, porque aquela é só para entrar.

Pouco depois ele voltou com a foto e, talvez por suspeitar de minha irritação, cometeu de próprio punho o texto-legenda da foto que ilustra este texto. Como havia trabalhado na Folha, ele tinha prática em fazer legendas. Era um bom fotógrafo, sem dúvida, por isso conseguia registrar com suas lentes os momentos mais curiosos das celebridades. Lembro-me de uma foto famosa dele, na qual um ministro de estado cutucava o nariz com o indicador direito. A legenda era: “Ministro cutuca o nariz com o indicador direito.” Veja, freguesa, o texto-legenda que o maldito perpetrou para a foto acima: “A lua esteve ausente de nosso céu nesta quarta-feira, como comprova a imagem".

• PGC •

quarta-feira, 5 de março de 2008

No tubo


Só agora descobri que o grupo Alcatéia Blues tem um filme postado no YouTube. O som não está lá essas coisas, porque foi uma gravação direta, sem equipamento próprio para som. Mas dá para ter uma idéia de como a moçada brinca. Também tem uma diferença na formação, pois o baixista do filme ainda não é o Dênis, o lobinho. O link é este:

http://www.youtube.com/watch?v=0SvfQjDYHrA

Convido a freguesa a ver o vídeo e confirmar o que digo: os caras estão prontos. Agora vamos aguardar a gravação do primeiro CD, para a gente ouvir o bando na hora que quiser.

• Celso Paraguaçu •



terça-feira, 4 de março de 2008

Alcatéia bate um bolão


Em vez de ver o futebol, que é uma caixinha de surpresas, domingo eu fui ver o Alcatéia Blues, para não ter surpresas. O nome já diz de que se trata, blues. Os caras tocam blues mesmo. Melhor seria dizer os caras tocam blues e tocam mesmo. Felizmente são amadores, não fazem música por dinheiro. Tocam por esporte. O negócio deles é o prazer. E dá para se ver que gostam de fazer música de boa qualidade. A banda ainda é desconhecida, mas escreva aí o nome, freguesa: Alcatéia Blues.

Mas a freguesa não deve esperar ver o grupo na TV. Blues não é música para o chamado grande público. A televisão não mostra qualidade, mostra empreendimentos. Os pseudo-artistas que aparecem no eletrodoméstico estão lá a negócios. Estão se lixando para a qualidade do que cantam e tocam. A rapaziada da Alcatéia está mais a fim de tocar música de qualidade, e isso é para poucos. Se a freguesa quiser acompanhar a trajetória da Alcatéia, vai ter de ver as apresentações da banda. Felizmente eles têm um site (http://www.alcateiablues.com.br/), e colocam lá a agenda.

Se o bando – Alcatéia não é banda, é bando – surpreende pela qualidade musical, o local onde rolou o show não é menos surpreendente. Era um palco montado num autêntico campo de futebol de várzea, com buracos e murundus, à beira da rodovia Castello Branco. E foi um jogão. Mesmo se apresentando num campo de várzea, a equipe é de primeira divisão.

• Celso Paraguaçu •

De carona num trem de carga



Duas guitarras, gaita, baixo e bateria. Não precisa tanto para fazer um bom blues, diriam alguns. Um sujeito cantando e tocando violão dá conta do recado. Mas ouvindo a Alcatéia percebe-se que a arte dos meninos consiste exatamente em não desfigurar o blues, mesmo com uma formação mais ampla. Eles têm as manhas de explorar os recursos que excedem. Quando o trem entra no túnel... Bem, é melhor contar o filme do começo.

Dá para se imaginar uma cena de cinema: no sul dos Estados Unidos, por volta de 1930, num vagão de carga, um sujeito canta suas mágoas ao violão. Outro viajante clandestino tira do bolso uma gaita e começar a soprar, dialogando com o cantor. Um terceiro marca o ritmo no caixote em que está sentado e bate o pé no assoalho de tábuas do vagão. E se aproximam mais dois com violões. Um deles traz no dedo um gargalo de garrafa, o bottle neck. O outro faz o baixo. Pronto. Está projetada a formação da Alcatéia.

O bando toca algumas músicas desse tempo, mas não se limita ao blues tradicional. O trem em que viajam vai do delta do Mississipi para Chicago, mas tem um itinerário inusitado. Passa por São Paulo, Porto Alegre e Cabinda, em Angola. Os meninos têm algumas peças deles mesmos e de outros bons blues men nacionais, como Nei Lisboa e André Cristóvão, além do angolano Nuno Mindelis.

Meninos é força de expressão. Acho que o grupo se chama Alcatéia porque os integrantes estão na idade do lobo, ou perto disso. A idade do lobo, se a freguesa não sabe, é aquela em que o infeliz corre atrás da Chapeuzinho Vermelho, mas só come a vovozinha. Pedrinho da bateria, Rafael da gaita, o Douglas, guitarra e vocal, e o Peter, guitarra, já passaram dos 40. Talvez o Peter não tenha passado, mas está na boca da caçapa. Ele jura que só tem 33, mas parece que se não viu o dilúvio pelo menos pisou no barro. Só quem não está na idade do lobo é o Dênis, baixista. Com vinte e poucos anos, ainda é lobinho. Mas tem a pinta da fera.

O blues não é o tipo mais adequado de música para espetáculos ao ar livre. Blues em campo aberto só existiu no seu nascimento, quando era só um lamento cantado nas plantações de algodão. Os instrumentos ingressaram no blues dentro dos vagões de carga dos trens. E talvez seja a expressão musical que se mantém mais ligada a suas raízes. O blues evolui, se enriquece, se sofistica, mas ainda se identifica o balanço do trem nos boogies. Ou o ronco do outro sujeito que dorme no vagão, em cima de um monte de palha, na lenta batida do slow blues. O blues continua sendo feito assim: o ambiente propõe um ritmo, seja o andar do trem ou o ressonar compassado do companheiro, e o blues man sobrepõe a letra e a melodia.

Isso pode sugerir que a bateria e o baixo representem a base rítmica para a música que se desenha em cima. Essa é a essência, mas o bando não se limita à essência. Em algumas peças, a guitarra-base está sincronizada com a bateria e o baixo na pulsação da melodia. De repente os meninos invertem a base. O Peter, que solava dedilhando sem palheta, passa segurar forte a marcação enquanto o Douglas viaja no solo. No momento seguinte, tudo se altera outra vez: guitarras, baixo e bateria se concentram na cadência, para se ouvir ao fundo o choro lamentoso da gaita. Fechando os olhos, quase se consegue ver o trem no túnel, quando todo o ambiente se torna ritmo, enquanto o distante apito da locomotiva soa nas palhetas da gaita do Rafa.

Às vezes a gente fecha os olhos para viajar no som do blues. Quando a Alcatéia toca “Five and a half”, por exemplo, quem está de olhos fechados tem a impressão de estar vendo a garota de Ipanema de 50 anos atrás passando à sua frente. “São as dissonâncias” explica Douglas mais tarde, “na bossa nova tinha muito disso.”

Curioso imaginar o vai-e-vem da arte. O blues, pai do jazz, usando um recurso da bossa nova, filha dileta deste último. Talvez isso explique o estranho mas enriquecedor itinerário do trem da Alcatéia. Afinal, a origem do blues e do samba é a mesma, do outro lado do Atlântico.

• Celso Paraguaçu •

sábado, 1 de março de 2008

Imprensa divertida 3


Para nossa alegria, a BBC Brasil continua cometendo ótimos títulos. Veja estes, freguesa:


BBC Brasil, 29 de fevereiro, 2008 - 12h09 GMT

Tribunal italiano considera ilegal tocar partes íntimas em público

- Os italianos vão sair dos mictórios públicos de calças molhadas.



BBC Brasil, 4 de julho, 2007 - 08h55 GMT

Brasileiros estão entre os que perdem a virgindade mais cedo

- Povinho distraído! Essa moçada perde tudo!



BBC Brasil, 29 de fevereiro, 2008 - 10h57 GMT

Dente implantado em olho ajuda cego a voltar a enxergar

- Dente por olho, olho por dente. Chato é escovar o olho três vezes por dia.


BBC Brasil, 28 de fevereiro, 2008 - 09h59 GMT

Perfume reúne odores de sangue, suor, saliva e sêmen

- Parece a oferta de Churchill, mas, em vez de lágrimas, tem uma cuspida e uma gozada.



BBC Brasil, 16 de julho de 2007

Estudo americano lista '237 razões para fazer sexo'

- E ainda tem gente dizendo que é um ato irracional!



BBC Brasil, 5 de junho, 2007 - 10h34 GMT

Britânicas preferem comer chocolate a fazer sexo, diz pesquisa

- Provavelmente esse resultado reflete a prática citada no título abaixo.



BBC Brasil, 18 de maio, 2007 - 09h06 GMT

Uma em cada três britânicas 'já fez sexo no escritório'

- As outras duas trabalham em fábricas. E dizem que preferem comer chocolate.



BBC Brasil, 29 de fevereiro, 2008 - 23h52 GMT

Loja londrina ensina mulheres a fazer pedido de casamento

- Ou a escolher chocolates, conforme o local de trabalho.



BBC Brasil, 17 de abril, 2007 - 11h37 GMT

Brasileiros só ficam atrás de gregos em ranking de sexo

- Deve ser um ranking de homossexualismo. Mas causa espanto essa preferência por gregos.