quinta-feira, 28 de fevereiro de 2008

Chamem a faxineira



O fabricante do absorvente Care Free lançou um sabonete especial para lavar xoxotas. Na campanha publicitária, o locutor diz: “O sabonete Care Free limpa delicadamente sua área íntima.”

O verbo limpar já parece impróprio. Estão dizendo que a freguesa está com as partes baixas sujas? A propaganda tem usado outros termos, com os quais os ouvidos já estão acostumados, como fazer a higiene. Até lavar seria melhor. Limpar é mais adequado para as mãos dos mecânicos do que para as xoxotas das madames e patricinhas, provável público-alvo do novo produto. A menos que tenham acabado de sair da oficina.

Mas limpar a xoxota não é nada. Pior é chamá-la de “área íntima”. Área íntima? Parece que o autor do texto está saturado de fazer anúncio de apartamentos. Área social, área de festas, área de lazer. Talvez o anúncio ficasse mais atraente se a xoxota fosse tratada por área de lazer.

Se a moda pega, vai ser uma encrenca danada. Uma parte significativa do público-alvo do tal sabonete gosta de usar palavras modernas que vê na televisão. E isso pode tornar os diálogos muito pouco claros, já que se trata de um termo mais apropriado para lançamentos imobiliários. Será que o cabeleireiro vai entender quando a madame disser: “Desconfio que meu marido está trocando minha área íntima pelas dependências da empregada”? Pode ser apenas um projeto de reforma do apartamento. (GC)

terça-feira, 26 de fevereiro de 2008

Agrotóxico com olho de vidro e perna-de-pau


A Basf está divulgando um alerta contra falsificação dos venenos de uso agrícola fabricados pela empresa. Segundo o comunicado, “os defensivos falsificados oferecem sérios riscos ambientais e de saúde”. Já os legais apenas oferecem riscos ambientais e de saúde sérios.

O comunicado também diz que os custos baixos dos insumos oferecidos pelos falsificadores seduzem os produtores em momentos vulneráveis da atividade. Nem poderia ser de outra forma.

E a gente se põe a pensar: se os falsificados são mais baratos, devem ter uma proporção menor do princípio tóxico. Isso os torna menos agressivos à saúde do aplicador e do consumidor e ao ambiente.

Não se defende aqui o uso de agrotóxico falsificado. Nem o uso do produto legal. O prejuízo que as falsificações causam aos cofres da Basf é decerto muito menor que os danos causados pelos agrotóxicos da Basf ao consumidor, ao aplicador e ao ambiente.

Fica o alerta aos agricultores: veneno pirata também faz mal à saúde. (GC)

sábado, 23 de fevereiro de 2008

Birca do mato




Estranha a canonização do Frei Galvão. Pareceu um tanto apressada. Outros santos do Brasil estavam na fila havia muito mais tempo, como José de Anchieta, mas foram preteridos. Anchieta não nasceu no Brasil, ao contrário do franciscano, mas havia um punhado de beatos que brotaram desta terra e já tinham passado pela etapa da beatificação. E ainda outros com alto potencial milagreiro, como Padre Cícero Romão Batista, o Padim Ciço. Mas o papa, do alto de sua infalibilidade, escolheu Frei Galvão.

Não se descarta a hipótese de uma motivação política. É possível que o novo papa pretendesse aumentar o plantel de santos franciscanos. Há quem diga que poder no Vaticano se divide entre quatro grandes ordens religiosas: dominicanos, jesuítas, franciscanos e beneditinos. Os quadros do primeiro escalão do estado-Igreja são divididos entre as “coligações partidárias” que essas quatro ordens formam com as menores, que apóiam uma ou outra. No caso do Vaticano, o equilíbrio de poder também exige ações de cunho “espiritual” ou popular: santos com mais devotos "contam mais pontos" para as ordens às quais pertenceram.

O Cardeal Joseph Ratzinger, como era conhecido antes de ascender ao papado, era jesuíta, mas escolheu o nome de Bento 16 em homenagem ao fundador da ordem dos beneditinos. Não quis o nome de Ignacio, o de Loyola, que criou sua própria ordem. Deu o recado, com essa ação, de que em seu papado os jesuítas não teriam mais poder que as demais grandes ordens. Isso reforça seu próprio poder. Quer mostrar que não é o papa dos jesuítas, e sim de toda a Igreja. Canonizar um frei franciscano como o primeiro santo genuinamente brasileiro pode dar a entender aos líderes das ordens que o papa pretende distribuir o poder do Vaticano com certa eqüidade. Um santo nascido no Brasil pode contar muitos pontos. Trata-se, afinal, do país com a maior população soi-disant católica do mundo. Parece um bom motivo para o pedido de canonização de Frei Galvão ter passado à frente dos demais santos aqui do Brasil.

Normalmente um processo de canonização é lento, envolve muita investigação. Não pode pairar dúvida sobre a santidade do candidato a santo. Por isso a Igreja instituiu a figura do advogado do diabo. Cabe a este apresentar provas que dificultem a canonização do indivíduo em questão. No caso do Frei Galvão, porém, parece que o Vaticano, em vez de um advogado do diabo, contratou os serviços de um rábula-de-porta-de-cadeia.

O “milagre” que deu fama a Frei Galvão pode ter sido apenas uma conseqüência da ignorância de um caboclo apavorado, que buscava ajuda para sua mulher em trabalho de parto. Mas o rábula do capeta parece ter passado por cima das circunstâncias históricas e culturais que determinavam o contexto social em que o dito milagre teria ocorrido. Nos próximos parágrafos, este blogueiro, no mais nobre intuito de colaborar com a excelência do papado de Sua Santidade, veste sua capa preta até os pés para demonstrar que o milagre do santo não passou de um mal-entendido.

Dá para imaginar o que era a ignorância de um morador de São Paulo no século 18? Não havia internet, nem jornais, nem rádio, nem televisão, nada. Hoje os paulistanos são todos cultos e bem informados, lêem Caras, vêem Adriana Galisteu, Datena, Hebe Camargo, Otávio Mesquita e Big Brother, sem falar nos pastores milagreiros que invadem a televisão madrugada afora. Os paulistanos de hoje – e os brasileiros em geral – estão cobertos pelo manto da sabedoria. Mas naquele tempo não era assim. Grassava nos campos de Piratininga uma sólida ignorância e um profundo analfabetismo semilíngüe. Sim, nem se falava uma língua inteira nessa época, em São Paulo.

Era-se analfabeto, mas não em português e sim na língua geral, uma língua franca que misturava elementos do tupi e do português, com pitadas de guarani e castelhano. Daí a existência de nomes como Tietê, Tatuapé, Cangaíba, Jaraguá, Jaguaré, Anhangabaú e tantos outros topônimos. E não só topônimos. Os caipiras – e eram todos caipiras – comiam pipoca, paçoca de jabá e cambuquira, por exemplo. No português da época essas palavras não existiam. Mas na São Paulo do século 18, a língua portuguesa só existia na frustrada tentativa de comunicação dos padres com os fiéis. A língua oficial da igreja, para uso canônico e ritual, era o latim. O português entrava nas homilias e sermões que ninguém entendia. A comunicação nas casas, nas ruas e nos negócios era feita na língua geral.

Os índios entendiam a língua franca e a utilizavam para conversar com os caipiras portugueses e com os curibocas (mestiços) de São Paulo. Os caipiras e curibocas entendiam a língua franca e a usavam tanto na comunicação com os índios quanto ao conversar com seus pares. Só que os índios também falavam suas próprias línguas. Os portugueses de São Paulo, já não mais.

Geralmente casados com índias, comunicavam-se em seus lares na língua geral. As crianças só conheciam a língua geral e esta disseminou-se rapidamente. A tal ponto que o Marquês de Pombal, a mais colorida eminência parda de Portugal, proibiu o uso da língua geral em São Paulo em 1757, quando Frei Galvão tinha 18 anos.

A proibição demorou muito a pegar. Ainda hoje, se um brasileiro cutucar alguém pode levar um tapa ou um soco. Em Portugal, não se cutuca ninguém. Se houvesse a ação, a palavra seria outra, pois cutucar vem do tupi. A reação poderia ser uma bofetada ou um murro; tapa e soco também são palavras indígenas.

Analfabetos e obrigados a se aproximar da Igreja, detentora de todo o saber e representante do poder, os caipiras paulistas logo perceberam que os ministros religiosos não eram ignorantes. E não eram mesmo. Estudavam nas grandes cidades, como Rio de Janeiro e Salvador, e traziam com eles todo o conhecimento. O próprio Frei Galvão, caipira de Guaratinguetá (nome indígena), estudou nessas grandes cidades. Em latim e português. E esqueceu a longínqua e proibida língua geral dos índios, caipiras e mamelucos.

Os padres liam e escreviam. Na velha vila paulistana, raríssimos eram os que sabiam ler e escrever. Praticamente só os padres. Mais um motivo para serem considerados homens sábios. Tinham até uma língua própria para conversar com deus! Falavam com o todo-poderoso em latim e com os homens em português. Deus eu não sei, mas os paulistanos não entendiam bulhufas do que os padres falavam, acostumados que estavam com a língua geral. Deus talvez tivesse preferido o hebraico, mas não se incomodava com o latim, pois era todo-poderoso.

Pode-se imaginar o desespero que levou um sujeito absolutamente ignorante a vencer o temor e pedir a ajuda do padre, o ser mais sábio que ele conhecia:

– Frei Govão, Frei Govão! A cunhã 'tá de barriga e 'tá gritano! Vai tê um piá, Frei Govão, um curumi, mas 'tá cum dô, Frei Govão!

Curumi? Piá? Cunhã? É provável que o religioso não se tenha dado conta de que a mulher do suplicante, a cunhã, estava parindo. Sim, ela ia ter uma criança, um piá, um curumi. Informação afobada, mal pronunciada, com palavras desconhecidas. Se tivesse entendido tratar-se de um parto, o santo homem não se assustaria, porque já tinha lido isso na Bíblia. Talvez fosse difícil explicar ao roceiro, mas está lá, no primeiro livro, o Gênesis, a praga lançada a Eva na ira divina: “E tu, mulher, parirás com dor!”

Os mais observadores poderão engasgar com a expressão “ira divina”. Afinal, ira é um pecado capital, o que aparentemente compromete a harmonia da expressão. No tempo do Gênesis, contudo, ainda não existiam pecados capitais. Isso é mais moderno, invenção do catolicismo. Mas deixemos isso de lado, por ora. Não faltará oportunidade de se descer o malho nos sete grandes vícios. Voltemos ao pobre sacerdote, que está no sufoco.

Frei Galvão tem de mostrar conhecimento e segurança, dois atributos essenciais para manter a liderança sobre o povinho ignorante da vila. E tem de ajudar um tabaréu assustado, que fala uma estranha língua, mas que nada pede para si e sim para alguém que sofre. Isso comove o franciscano, naturalmente. Ele quer ajudar, mas mal entende qual é o motivo de tanta atribulação do suplicante.

Mesmo não percebendo que se tratava de um parto, compreendeu que tinha algo a ver com barriga e com dor. E então disse ao sujeito o nome do remédio, procurando tranqüilizá-lo:

– Dê-lhe um pouco de bicarbonato de sódio.

Se o problema fosse uma azia ou má digestão, a substância faria bem. Se fosse qualquer outra coisa, mal não faria. Esse negócio de medicamentos não recomendados em caso de suspeita de dengue também é novidade. Mas o caipira não estava familiarizado com a língua portuguesa. Assustado que dava dó, ficou mudo, olhando, com cara de bobo, para o sacerdote.

– Repete comigo – disse Frei Galvão com uma paciência franciscana – Bi-car-bo-na-to. Bi-car-bo-na-to de só-dio.

E o caipira:

– Birca do mato... birca do mato tifódio.

“Melhor escrever”, decidiu Frei Galvão. Procurou um pedaço de papel, mas... Papel? Numa terra de analfabetos? E longe dos centros urbanos de importância? Papel, em São Paulo, não tinha serventia. Para isso que a freguesa pensou usavam-se folhas de plantas, sabugos de milho e outros produtos naturais, descartáveis e biodegradáveis. Não há razão para se assustar com a idéia de usar um sabugo de milho para essa finalidade. O uso era apenas externo, em movimento tangencial.

O que interessa é que papel não havia. Mas Frei Galvão era homem de expediente. Como franciscano, estava acostumado a viver na mais extrema pobreza e a se arranjar com o que tivesse em mãos. Não fosse assim, como teria conseguido construir um convento no pântano que havia onde hoje é o bairro da Luz?

Frei Galvão, inteligente e cuidadosamente, rasga uma fina tira de papel da margem de uma página da bíblia que estava na mesa. Molha sua pena no tinteiro e escreve: bicarbonato de sódio. Abana a tirinha de papel até a tinta secar, dobra-a delicadamente, porque o papel era muito fino, e a entrega ao tabaréu dizendo: “Faz tua mulher tomar isso”.

O religioso imaginava que o sujeito levaria a “receita” à botica para aviar, mas o tipo era mais ignorante do que podia supor o bom frei. Saindo da igreja ainda trêmulo – não só por ter tido a coragem para pedir ajuda ao religioso, que era a expressão do poder, mas também porque levava consigo algo sagrado, rabiscado em um pedaço da bíblia – o coitado correu direto para casa, com o papelzinho firmemente seguro na mão fechada e encostada no peito.

E lá chegando, fez exatamente o que o frei lhe disse: pegou uma cuia com água e fez a mulher tomar aquilo. Teve o cuidado de dobrar mais um pouquinho a tirinha de papel, para que ficasse ainda menorzinha, mais fácil para a cunhã engolir. E ela, no desespero das dores do parto – por desconhecer a bíblia, não esperava que parir doesse tanto –, engoliu o papelzinho, enquanto o caipira recitava, cheio de fé: "Birca do mato, birca do mato tifódio". E a mulher pariu.

Pariu, porque pariria mesmo. Com papelzinho ou sem. Naquele tempo não havia obstetras; quem decidia a hora do parto era o nascituro. Não a mãe nem o papelzinho. Mas o tabaréu ficou encantado com o milagre:

– Frei Govão falô preu repeti uma reza curtinha, “birca do mato, birca do mato, tifódio”, dispois rabiscô uns vobisco tuórum num papezinho de blíbia, dei pra cunhã tomá e ela pariu! O home é um santo!

Daí até as freiras do convento passarem a fazer papeizinhos com orações e os darem para que os fiéis os ingerissem foi um passo. E São Paulo, que não tinha papel nem para remédio, passou a ter papel para remédio. Para outros fins, continuava-se usando folhas secas e sabugos de milho.

Creio que os fiéis não desembrulham os papeizinhos que hoje devem vir encapsulados em material que se degrada no estômago. Mas é pouco provável que esteja escrito, com letras redondinhas e minúsculas de freiras igualmente redondinhas e minúsculas, “Birca do mato, birca do mato, tifódio”, como no milagre original. Provavelmente hoje em dia traz alguma oração curtinha ou um verso em latim tirado de uma ladainha.

O trabalho das freiras – ou terapia ocupacional, se preferem – valeu a canonização do pobre Frei Galvão, cuja alma já não pode descansar em paz. Fosse ainda vivo, certamente estaria dizendo, com sua humildade franciscana:

– Não, não, gente, não é para engolir o papel! É para levar para o boticário aviar! Ite, missa est. Dominus vobiscum, mas não chupem a receita!

Mas talvez tivesse de dizê-lo na língua geral, porque em português ninguém iria entender. Continuam não entendendo e engolindo os papeizinhos.

Atualmente, no Brasil, quase não se fala mais a língua geral. O que se desenvolveu foi uma espécie de religião geral. A mistura de cristianismo, candomblé, astrologia e livros de auto-ajuda é o que impera. O costume de saudar o santo, por exemplo, vem do candomblé. Quando se pronuncia o nome de Obaluaiê, faz-se também a saudação ao orixá: Atotô, Obaluaiê! Com Iansã é a mesma coisa: Epa-rei, Iansã! E com os outros orixás, da mesma forma.

Pois não é que na religião geral dos brasileiros esse costume do candomblé já está pegando entre os devotos de Frei Galvão? Saúdam-no pedindo que olhe por eles, mas usando um termo da gíria do banditismo, “filmar”, que significa observar atentamente, velar, zelar. É, ao mesmo tempo, uma saudação, como no candomblé, e uma súplica, como no catolicismo. Basta ligar a televisão num dia de jogo e observar os cartazes que os fiéis de São Galvão levam para as arquibancadas, com a saudação ao novo santo, o santo brasileiro: “Filma eu, Galvão!”. Êh-êh!

• Celso Paraguaçu •

Foto: Celso Paraguaçu

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2008

À sombra da Terra



A equipe de fotógrafos do Meia-sola acompanhou o eclipse lunar ocorrido na última madrugada. Não temos a foto do eclipse em si, é claro. Tratando-se de um eclipse total da Lua, os rapazes fotografariam o quê?

Por isso fizeram algumas tomadas do início do eclipse – a melhor das quais selecionamos e mostramos acima –, e foram beber cerveja no bar do Fiapo, aqui do lado, onde a Jucilene sambava ao som do tocador de CDs piratas. Quando a ocorrência astronômica estivesse se aproximando de seu final, voltariam às lentes para registrar mais alguns instantâneos.

A primeira foto mostra o momento em que nosso planeta começou a imprimir sua sombra na superfície do prateado satélite natural. Nota-se que a Terra parece ter sido pega de supetão pelo fenômeno, ou teria preferido uma posição fotograficamente menos desvantajosa.

Depois de várias cervejas, com as portas do boteco já meio cerradas e a Jucilene, ligeiramente alcoolizada, sambando em cima da mesa dos rapazes, os profissionais fizeram novas tomadas do fenômeno astronômico já em seu declínio. Referimo-nos ao eclipse, naturalmente. A Jucilene também é um fenômeno, mas de outra espécie.

Talvez em razão da persistência óptica, as fotos do final do eclipse – uma das quais é a de baixo – ficaram um tanto estranhas. Isso acontece. (GC)



quarta-feira, 20 de fevereiro de 2008

O que é que Cuba tem a ver com as calças (I)





Na semana em que Fidel Castro anunciou sua renúncia, o Meia-sola não se poderia furtar à discussão de tão relevante tema. Vista puramente como um ato político, a renúncia tem um determinado significado. Mas tal visão isolaria a decisão castrense do contexto mais amplo em que se insere. A análise demanda igualmente a abordagem histórica, sociológica e cultural da população da Ilha.

O brilhante artigo que reproduzimos abaixo, de autoria de Paula Sibilia e enviado pelo querido Nivaldo Manzano, serve como metáfora para as considerações sobre Cuba, sobre o comunismo, sobre contradições, etc. Ademais, propicia inúmeras reflexões no âmbito estrito do metafórico texto. Está fotograficamente comprovado que intelectuais feministas também têm bunda. Mas o verdadeiro papel da bunda no pensamento existencialista não é evidente. E poderá ser determinante para o futuro da civilização como a conhecemos. Ou não?

Por fim, informamos à distinta freguesia que, dada a inexistência em nosso banco de dados da foto comentada pela autora do artigo, ilustramos este texto com uma imagem do Palhaço Guarda-Chuva. Não são os glúteos beauvoirianos, mas trata-se, inegavelmente, de uma cada de bunda. (GC)



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A bunda de Simone de Beauvoir


Por Paula Sibilia


Uma foto da escritora feminista nua, com alguns traços retocados digitalmente, causa polêmica em Paris


A despeito de sua esmagadora insistência em tecnicolor, o romance entre o presidente Nicolas Sarkozy e a cantora Carla Bruni não é o tema exclusivo das conversas e das agendas midiáticas neste inverno francês. Outro pequeno escândalo ameaça lhe fazer alguma sombra: nas comemorações pelos cem anos do nascimento de Simone de Beauvoir, verdadeiro totem da intelectualidade local, a bunda dessa escritora também acende calorosas discussões.

O furacão se desatou com a primeira edição de 2008 da revista "Le Nouvel Observateur". O tradicional semanário da “esquerda bem-pensante” estampou em sua capa uma imagem que alguns celebraram pela ousadia e muitos condenaram por sua canalhice. Sob uma manchete que gritava seu nome em vermelho e já errava um pouco no tom ao qualificá-la como "A escandalosa", aparecia uma foto da autora que em 1949 fundou um novo gênero com seu ensaio "O Segundo Sexo". Aqui, porém, a filósofa que morreu há mais de duas décadas (em 1986) mostra um de seus ângulos menos conhecidos: de costas, nua, arrumando o cabelo no espelho após sair da banheira.

O autor desse instantâneo atípico é o norte-americano Art Shay, amigo do escritor Nelson Algren, um dos amantes mais famosos da eterna companheira de Jean-Paul Sartre. Sua história remonta à longínqua Chicago dos anos 50. “Em sentido estrito, sim, esta fotografia foi ‘roubada’”, confessa agora o autor do clique, convocado para somar sua voz aos debates despertados pela súbita fama de sua velha obra, cujos negativos só foram resgatados após uma inundação em sua casa no Illinois quando a retratada já tinha morrido. Mas Shay esclarece que a imagem teria sido obtida de maneira ilícita apenas “no sentido em que as feministas o entendem”.

Era 1952, e Simone tinha 44 anos de idade. Como o apartamento alugado pelo boêmio Algren não possuía nem sequer um chuveiro, o jovem fotógrafo foi o encarregado de emprestar um lugar onde a convidada pudesse tomar um banho. Na época, ele trabalhava como estagiário na revista "Life" e não desgrudava de sua fiel câmera Leica; ainda mais naquela ocasião, pois o romancista tinha lhe advertido que sua amante francesa raramente fechava a porta do banheiro. Parece que ela ouviu os cliques, virou-se e chegou a exclamar, com ar despreocupado e até mesmo achando graça: “Garoto levado!”. Mas não fechou a porta, de acordo com o relato do aludido rapaz, e nem pediu para parar ou coisa parecida.

È claro que nenhum dos dois poderia ter imaginado, nem de longe, o bafafá que 66 anos mais tarde envolveria essas imagens furtadas desse modo quase inocente. Na época, elas não tinham “valor de mercado”, esclarece seu perpetrador, que portanto logo as esquecera e até chegou a acreditá-las perdidas durante cinco décadas.

Agora, o velho fotógrafo só se arrepende de uma coisa: seu amigo continuou a convidá-lo para passar os finais de semana em sua casa da praia, onde Madame costumava visitá-lo ao longo dos 20 anos de seu relacionamento. “Talvez teria podido fotografar os dois juntos, nus”, imagina com certa nostalgia o único sobrevivente dos três. Por isso, considerando o insólito valor que seus modestos cliques de folga atingiram neste novo século, e parafraseando uma cantora amiga de sua modelo involuntária, o artista americano debocha em francês: “Oui, je regrette” (sim, eu lamento).

Em seu favor, porém, avisa que não é nenhum improvisado. Adverte, inclusive, que seu nome cintila no âmbito do fotojornalismo por ter sido “o primeiro paparazzo a fotografar a máfia”. E mais: diz que sua filha advogada é “uma ardente feminista”, co-autora de um livro intitulado " Guia dos Direitos Legais para as Mulheres". Mesmo com esse digno currículo em seu haver, a primogênita de Art Shay não pensa que seu pai deva se desculpar por nada – e ele tampouco, é claro.

A verdade é que este fotógrafo de 86 anos comemora um sucesso considerável: sua obra reluz em dezenas de livros e museus. Entre esse vasto acervo, orgulha-se da imagem escolhida pelo semanário parisiense, que seria “uma das favoritas dos colecionadores”. Shay termina seu depoimento à imprensa francesa convidando para a sua retrospectiva, que será inaugurada daqui a três meses em uma galeria de Paris – e incluirá, bien sûr, o mais célebre de seus retratos.

Mas qual é o problema, então? Por que tanto alvoroço? A foto já era conhecida, vêm sendo exposta em diversos meios desde o ano 2000. Além disso, a imagem é bonita pelo enquadramento, pela luminosidade de seus tons cinza, pelo clima de época que sugere e pela espontaneidade na captura do instante. E mostra uma Simone de Beauvoir inusitadamente bela, corpórea, viva, sensual. Contudo, há algo neste episódio que gera um mal-estar difícil de silenciar.

Tanto em vida como após a morte de ambos, o casal que encarna o existencialismo já freqüentou as páginas desta revista: não apenas com seus próprios artigos, entrevistas e manifestos, mas também nas profusas citações motivadas pelas contendas das últimas décadas. Entretanto, pelo menos até hoje, sempre o fizeram pudicamente vestidos, e a bunda de Sartre jamais foi estampada na capa.

Mesmo neste confuso século XXI, no qual os costumes e os moralismos enrijecessem sem evitar (e nem contradizer) uma expansão dos códigos pornográficos, ainda é inconcebível que isso venha a acontecer algum dia. Por mais bonitas que fossem a foto e a bunda do filósofo em questão, dificilmente iriam ilustrar a capa desta publicação – ou mesmo de qualquer outra. Isso é válido para Jean-Paul Sartre, mas também para qualquer outro escritor ou pensador que conjugue seu nome em masculino.

Essa constatação evidencia, aos gritos, uma verdade que teima em ser ignorada: as lutas feministas pela igualdade não ficaram tão obsoletas como pode parecer, e a obra de Simone de Beauvoir talvez não deveria estar tão fora de moda como insinua o vulgar recurso à sua bunda nas comemorações do seu centenário. No canto superior direito da famigerada capa de janeiro, inclusive, o rosto de uma Benazir Bhutto muito bem vestida ilustra outra manchete de máxima atualidade: "Paquistão: o país de todos os perigos".

“Eu posso entender a utilização do PhotoShop para corrigir a forma das pernas”, escreveu Art Shay no site da revista francesa. O fotógrafo reconhecia, assim, “a necessidade de retocar as imagens para publicá-las em uma capa”, embora não deixasse de frisar que “isso nada acrescenta à graça do original, muito pelo contrário”.

Muitos concordam: a foto era mais bonita antes dos retoques. Porém, a intervenção digital não teria nada de extraordinário; hoje é muito habitual, faz parte das regras básicas da mídia e decorre, provavelmente, da influência publicitária que permeia todas as imagens e todos os discursos. Além, é claro, do tácito dever de adaptar os corpos femininos aos estritos padrões de beleza que vigoram na atualidade: afinando as silhuetas, suavizando os contornos, alisando as rugosidades e polindo todas as “impurezas”.

O bisturi digital é colocado ao serviço de um pudor "clean" e "cool", que parece temer o realismo da matéria sem negar suas filiações com as estéticas edulcoradas (lisas e hipócritas) da publicidade e da pornografia.

Eis alguns dos procedimentos aos quais a foto foi submetida, de acordo com um especialista: aclaramento da parte superior do corpo, sobretudo dos braços, para torná-los “mais fluidos”.

Além disso, foram eliminadas “as rugas nas costas e umas manchas que parecem ser sardas”. Já o alisamento da textura e a iluminação da parte inferior do corpo não teriam permitido apenas torná-lo mais visível, mas também “mitigar um pouco a abundância dos quadris, das coxas e das pernas”. Ademais, a borracha digital ajudou a aprimorar o visual do banheiro carente de luxos, acrescentando brilho às paredes e eliminando detalhes pouco nobres como o vaso sanitário e o rolo de papel higiênico.

“Se a mesma fotografia não tivesse sido retocada, dir-se-ia que é degradante para Simone de Beauvoir”, desafia uma das vozes do debate. “Mais do que o retoque, é a impudicícia da foto o que choca”, diz outro, remetendo ao fato de o clique não ter sido consentido, e muito menos a sua publicação. O que mais se questionou, porém, foi a tática miserável de mostrar o traseiro de uma filósofa feminista para avivar as discussões a respeito da sua obra – nem que seja de forma marcadamente tangencial, como está sendo o caso.

Cada época tem suas próprias misérias, e provavelmente também tenha os debates que merece. Alguns lembram, por exemplo, que três anos atrás, nas comemorações do centenário do nascimento de Jean-Paul Sartre, foi ele quem sofreu as censuras do PhotoShop. É claro que, neste caso, os imperativos do apagamento não visaram os eventuais relevos pouco harmoniosos do corpo nu do filósofo, porém outro atributo igualmente perturbador para a moral contemporânea: seu cigarro.

A fim de promover uma exposição dedicada ao escritor, a Biblioteca Nacional de Paris ornou seu prédio e o catálogo da mostra com uma bela foto de 1946, na qual Sartre aparecia fumando – como sempre, aliás. Mas os programadores visuais não resistiram, e resolveram aplicar as boas lições do “sanitariamente correto” e da atmosfera higienista dos tempos pós-modernos, eliminando o cigarro e deslanchando as polêmicas de rigor.

Ainda sobre o clima de época e a sutil tarefa de revisionismo histórico que tecem as mídias, um leitor dizia a respeito do artigo do "Nouvel Observateur" que “não ensina nada a quem já conhece Simone de Beauvoir; e para aqueles que não a conhecem, ela fica reduzida a uma sorte de Paris Hilton dos anos 50”. Em definitiva, tanto o nu da capa como a opção de focalizar “revelações escandalosas” sobre a vida da escritora na hora de homenageá-la, em vez de sublinhar sua obra e suas ações políticas, foi visto como uma estratégia de marketing à qual não faltaram os típicos ingredientes patriarcais.

Pois é impossível não fazer a referência: esta senhora cuja nudez conseguiu se destacar nas bancas de jornais saturadas de corpos femininos em exposição e à venda, é tida como uma relíquia do século XX, uma espécie de fóssil do feminismo em sua época de glória. Ainda hoje, tanto sua extensa obra escrita como a agitada militância que marcaram sua vida, fazem parte de qualquer história dos combates pela “liberação da mulher”.

Se na década de 1940 ela bramava contra o mandato da maternidade como uma forma sinistra de “subordinação à espécie”, o que teria pensado da exibição de sua própria bunda retocada nos palcos midiáticos do terceiro milênio?

Na contramão das críticas, uma jornalista canadense celebrava a eleição da imagem como “uma mistura das vaporosas ninfas pré-púberes de David Hamilton e as recentes publicidades da Dove”, aliando um efeito esfumaçado ao “realismo sem PhotoShop”. Mesmo se logo se soube que essa falta de truques digitais era apenas ilusória, é possível retomar o fio da questão: porque não mostrar o corpo (belo e real) de uma mulher que consagrou boa parte de sua obra e sua vida a libertar a feminilidade de todas suas amarras?

A inesperada voluptuosidade da foto teria colaborado nessa pugna histórica, soprando uma brisa cálida na imagem que consagrou Madame de Beauvoir como uma intelectual fria e áspera, pura inteligência incorpórea e severidade ideológica encasquetada em um turbante. O argumento parece válido, especialmente no meio do circo-Sarko que concentra as atenções da irradiação midiática e não deixa muito espaço para outros rebuliços.

A comparação pode ser frutífera, pois a ex-modelo com a qual o presidente francês não cessa de se mostrar também é bela e quase quarentona, e a imprensa tem publicado várias imagens de seu corpo desprovido de roupas. Contudo, há pelo menos uma diferença importante: todas essas fotos foram consentidas, claramente posadas e orquestradas, e muito, muito bem pagas por empresas como Guess, Armani e Vogue.

Eis uma das arestas mais instigantes do caso, pois é claro que todas essas fotografias também foram convenientemente retocadas pelos melhores especialistas do ramo, antes de serem divulgadas em capas de revistas e vitrines afins.

A bunda de Carla Bruni é uma de suas principais e mais reconhecidas virtudes, e como tal já foi fartamente clicada de diversos ângulos e nas mais variadas posições. Ela própria se ocupou de explorá-la de modo profissional, e tais empreendimentos lhe renderam bons lucros, além da celebridade nas passarelas da moda, nas páginas mais brilhosas dos jornais e nas telas da televisão. Pelo menos, antes de correr o riso de “ter que precisar do PhotoShop” e se dedicar, com idêntico sucesso, ao mercado musical – e, logo depois, aos affaires presidenciais.

Simone de Beauvoir também recebeu elogios por “conservar-se bem” após os 40 anos de idade, mas a bunda da escritora era completamente alheia à sua fama... Pelo menos até agora, quando ameaça se tornar um de seus atributos mais célebres. “Para quando as fotos de Marguerite Duras, Nathalie Sarraute e Marguerite Yourcenar em biquíni?”, perguntou um leitor revoltado.

As brigas feministas obtiveram grandes conquistas nas últimas décadas do século XX. As normas sociais se flexibilizaram, ampliando as liberdades de ação e escolha, e as mulheres ganharam o direito à autonomia individual. Pelo visto, porém, houve que pagar um preço por tudo isso: junto com o afrouxamento das represas, aumentaram incrivelmente as exigências na padronização do aspecto físico.

As reviravoltas socioculturais e as vitórias políticas não desenham apenas progressos lineares. Se, por um lado, tornaram-se permeáveis certos limites que antes eram intransponíveis; por outro lado, os requisitos da “boa aparência” se estenderam para abarcar um segmento crescente da população. E se tornaram rigorosos até a asfixia. Não por acaso, uma das principais representantes do feminismo contemporâneo, Naomi Wolf, denunciou o “mito da beleza” como o grande inimigo atual da emancipação das mulheres.

“O que se escondia realmente sob o austero turbante?”, pergunta com certa insídia o "Nouvel Observateur", sugerindo uma resposta no perfil arrebatado pela porta entreaberta do banheiro. Por isso alçaram suas vozes as ex-colegas da associação que ela fundou várias décadas atrás, declarando que “essa foto roubada à sua intimidade não ilustra em nada os escritos, a filosofia, o feminismo e a personalidade de Simone de Beauvoir”. Para elas, o gesto só demonstra “a vontade de instrumentalizar o corpo das mulheres para fins puramente comerciais”. Outro grupo feminista apelidou a revista de "Neo Voyeur", e exigiu que o diretor se desculpasse, ou então que ele próprio mostrasse as nádegas na próxima capa.

“Não se deve acreditar que bastará modificar sua condição econômica para que a mulher se transforme”, escrevia Simone de Beauvoir naquele ensaio seminal de 1949. Embora isso fosse fundamental, a “nova mulher” só conseguiria surgir quando fossem assimiladas “as conseqüências morais, sociais e culturais” que tamanho movimento anunciava e exigia. Por isso, as mulheres daqueles tempos estavam “dilaceradas entre o passado e o porvir”. Quando sua imagem foi clicada naquele banheiro de Chicago, a filósofa pensava que a mulher devia “fazer-se uma pele nova e criar suas próprias roupas”, mas essa nova protagonista da história só seria capaz de florescer “graças a uma evolução coletiva”.

Deveria ser no mínimo inquietante, portanto, já bem adentrado um século XXI não mais preocupado pelas injustiças sexistas e outras batalhas aparentemente vetustas, que o grande debate suscitado nas efemérides desta autora não remeta às suas reflexões. Longe daquela sisudez, agora o centro de todas as atenções é sua bunda, e o grande dilema já não parece ser se os ovários condenaram ou não suas portadoras a “viver eternamente de joelhos”, mas este outro: será mesmo que ela tinha celulite?

Publicado em http://p.php.uol.com.br/tropico/html/textos/2951,1.shl


Paula Sibilia

É professora do Departamento de Estudos Culturais e Mídia, do Instituto de Artes e Comunicação Social da Universidade Federal Fluminense (IACS-UFF). Doutora em Comunicação e Cultura pela ECO-UFRJ e em Saúde Coletiva pelo IMS-UERJ, é autora do livro "O Homem Pós-Orgânico: Corpo, Subjetividade e Tecnologias Digitais".





Amarelinhas: MS entrevista o Palhaço Guarda-Chuva





MS: Hoje tem marmelada?

GC: Tem sim senhor.

MS: Hoje tem goiabada?

GC: Tem sim senhor.

MS: E o palhaço, o que é?

GC: O palhaço é um símbolo da nossa civilização. E não só dos oprimidos. É o elemento que substitui o espectador, que encarna sua vontade e diz o que ele não pode dizer. O palhaço veste-se, pinta-se e comporta-se com objetivo de não ser levado a sério. Isso lhe permite escapar das convenções e limitações que a sociedade impõe aos indivíduos normais. O palhaço é o louco inconseqüente, que na Idade Média fazia críticas aos poderosos, travestido em bobo da corte. Corria o risco de ser enforcado a cada apresentação, mas se o rei o enforcasse, dificilmente conseguiria um substituto. Dessa forma o bobo funcionava como a consciência externa do poderoso monarca. Se este fizesse uma besteira, poderia ser ridicularizado pelo bobo na presença de toda a corte.

Hoje o palhaço fala e faz o que os reprimidos membros da sociedade gostariam de fazer. É um papel catártico. O palhaço disse tudo e o espectador sai com a alma lavada.

Esse negócio de dizer que o palhaço é ladrão de mulher é pura falácia. Ladrão de mulher é trombadinha. Nos circos de antigamente, o palhaço era o elemento que dispunha de alguns recursos para atrair as moçoilas fugidiças, é verdade. Era alegre, inteligente – mesmo quando fazia papel de bobo – e andava disfarçado. Ninguém sabia como era o palhaço quando não estava vestido de palhaço, então era freqüentemente acusado de ter roubado a moça. Podia fugir com facilidade, pois bastava que se vestisse à paisana para não ser reconhecido. E poderia ir para outro circo, ou mudar a pintura da cara, o nome e as roupas artísticas.

Mas a verdade é que o palhaço não seduzia ninguém. As mulheres é que queriam fugir da vida que tinham. O circo representava a possibilidade de realização do sonho da mudança. Muitas mulheres jovens são assim: atiram-se nos braços do presente, sem dirigir os olhos para o futuro. E é assim que a sociedade as quer, por isso inventa sempre um responsável pelas irresponsabilidades das moças.

Em geral, o palhaço era o acusado, ainda que nem sempre fosse o escolhido pelas moçoilas. Os acrobatas eram saradões; os equilibristas, ágeis; os domadores, valentes; os mágicos, misteriosos. Todos tinham atrativos para as mulheres. O palhaço era somente um palhaço.

Nós, palhaços, assumimos nossa função de bodes expiatórios da sociedade. Por isso dirigíamos à platéia as perguntas que você me fez. Sempre foi isso que a sociedade esperou do palhaço, e é o que espera ainda hoje: que se mostre ridículo, para encobrir o quão ridícula a própria sociedade é.

MS: Desculpe, GC, mas a conversa está ficando muito séria.

GC: Tá vendo? O que você quer do palhaço é palhaçada! Ninguém fala a sério com o palhaço!

MS: Bem, a proposta do Meia-sola é de não falar a sério, mesmo quando o assunto é sério. Hoje, por exemplo, temos a votação da CPMI dos cartões de crédito corporativos.

GC: Ah, não! Isso é palhaçada!



O que é que Cuba tem a ver com as calças (II)




A renúncia de Fidel Castro requer profunda reflexão. Sobretudo para os povos latino-americanos. Por isso convocamos nosso articulista político especializado em assuntos afro-cubanos para redigir algumas linhas. A idéia era projetar um pouco de luz sobre o tema, com isenção política, mostrando o que pode ocorrer em Cuba e com o comunismo nos próximos meses, anos e décadas.

Contudo Travanca, o articulista em questão, informou estar temporariamente incapacitado, em razão de dificuldade de articulação resultante da renúncia castrense. Ao saber da notícia, Travanca deu um murro na mesa e machucou o dedinho da mão direita, justamente o que utiliza para pressionar a tecla de interrogação. “E tal artigo”, diz ele, “exigiria uma profusão de interrogações.”

O Palhaço Guarda-Chuva, com sua ampla experiência em driblar circunstâncias adversas, sugeriu então que se publicasse o artigo abaixo, de autoria de Carlos Alberto Dória e enviado pelo querido Nivaldo Manzano. “Se não temos Castro”, explicou GC, “ponhamos gastro, que é parecido. Gastronomia. Pelo menos é materialista. E pode ter alguma relação com o merengue.”

Nem todas as explicações estão claras, mas esperamos que a freguesa não gema por isso. Ui! Na falta de uma análise político-econômica-
sócio-ambiental das conseqüências da renúncia de Castro, publicamos um texto sobre a gastronomia molecular, para seu deleite.

– De leite? Hmmm...

– Agora já foi.


___________________

O advento da gastronomia materialista

Por Carlos Alberto Dória


Visita do físico-químico Hervé This mostra atraso brasileiro na compreensão dos fenômenos culinários


Diante de uma platéia apinhada de chefes de cozinha, estudantes de gastronomia, jornalistas e curiosos, o físico-químico Hervé This lançou o seu repto: “O que acontece se colocarmos a maionese no forno de microondas?”. E, diante do silêncio: “Vocês estudam numa das mais importantes faculdades de gastronomia do país e nunca experimentaram para ver o que acontece?”.

Parecia mais uma piada desse hiperativo showman que viaja o mundo proferindo cerca de 150 conferências por ano e possui mais de 1.500 artigos publicados, tudo para divulgar a sua “gastronomia molecular”. Por isso ele sabe exatamente como a platéia reage a cada uma das suas provocações e pode utilizar o método do “estranhamento” para sensibilizar os seus ouvintes. No palco, ele faz o experimento e, quando abre o microondas, vemos o resultado que, então, parece uma obviedade.

Claro, a maionese não precisa ser salgada; pode ser doce. Nem precisa ter gema de ovo; pode ser feita com a clara, ou simplesmente com gelatina. Tampouco é preciso que o óleo seja de oliva; o elemento gorduroso pode ser um chocolate derretido, e assim por diante, para espanto de todos. O princípio é simples: são todos casos de emulsões de proteína, água e gordura.


Comemos apenas sistemas dispersos


Hervé This conta com exatidão que em 16 de março de 1980 pretendeu fazer um prosaico suflê de queijo e se socorreu de uma receita culinária da revista “Elle”. A receita dizia para adicionar as gemas duas a duas. Depois de experimentos, viu que essa orientação não tinha sentido, e decidiu então estudar os ditos culinários, que ele chama de “precisões culinárias”, ou seja, tudo aquilo que corresponde aos métodos, dicas e mitos, que assumem a forma de determinações categóricas das receitas.

Elas, de fato, estão por toda parte. Se observarmos uma edição do nosso “Dona Benta”, de 1950, verificaremos as seguintes jóias: “Se quiser que os ovos rendam mais, bata primeiro as claras e depois junte as gemas”. Ou, ainda: “Os bules de prata ou de qualquer outro metal polido e brilhante tornam melhor o chá, porque conservam por mais tempo uma temperatura elevada”.

Hervé This se associou ao físico húngaro Nicholas Kurti, que tinha como hobby a culinária, e, juntos, constituíram a nova disciplina: a gastronomia molecular. O seu objeto de estudo se compõe das precisões culinárias, sendo que, ao longo do tempo, Hervé colecionou 25 mil delas, criando um banco de dados que, em breve, aparecerá no site da instituição à qual está vinculado, o Inra (Instituto Nacional de Pesquisas Agronômicas, órgão público francês equivalente à nossa Embrapa).

A metodologia de estudo que a dupla de cientistas desenvolveu é simples: tudo o que comemos são apenas sistemas dispersos, chamados colóides. Suas propriedades foram estudadas por vários físicos, inclusive Einstein. Tais sistemas entremeiam e estabilizam, por mecanismos físico-químicos, vários estados da matéria. Assim, do ponto de vista físico, temos líquidos associados a gases, sólidos em gases, gases em líquidos, líquidos em líquidos, sólidos em líquidos, gases em sólidos e sólidos em sólidos. As emulsões são um exemplo claro disso. O leite, por exemplo, é uma emulsão.

Ora, se a matéria se organiza dessa maneira, as produções culinárias nada mais são do que fases num continuum de transformações físico-químicas, bastando estabelecer onde começa e onde termina essa seqüência de interações moleculares, conforme as receitas indicam, para estarmos diante da “cozinha” e seus mistérios.

O que Hervé This faz é “modelizar” as receitas, isto é, transformar o seu enunciado em algo que possa ser executado sob controle, como um experimento qualquer, separando a sua parte útil daquelas afirmações que carecem de sentido prático ou são verdadeiros equívocos a respeito de como se comportam os fenômenos de transformação da matéria. Confrontando o ponto de partida de uma receita com o seu resultado, explicitam-se as indicações pertinentes e as impertinentes de uma receita.

Um exemplo muito simples. Hervé teve oportunidade de comer a indefectível feijoada que sempre se apresenta aos estrangeiros. Especulou sobre o modo de fazer e formulou a seguinte questão: “Por que vocês, brasileiros, colocam cachaça na feijoada se é um álcool volátil, que evapora totalmente?”. Ele fez o experimento de evaporar um copo de cachaça e demonstrou que, no final, restavam apenas vestígios de caramelo. “Então por que não colocam apenas uma colherinha de caramelo na feijoada? Ou, se acham que a madeira dá gosto, um pedaço de madeira diretamente dentro da feijoada, retirando-a ao final?”.

Sua tese subjacente também é inquietante: 80% da energia gasta nos processos culinários tradicionais se perde totalmente. As formas das panelas, a evaporação inútil, o trabalho de produção da cachaça, nosso próprio trabalho, encerram um desperdício enorme e, além disso, contribuímos involuntariamente para o aquecimento do planeta. Um simples ovo, por exemplo, fica muito melhor se cozido a 64 ºC – coisa que os principais chefs de cozinha já assimilaram e propagam em todos os cardápios como o “ovo perfeito”.

Ora, se formos levar a sério os ensinamentos da gastronomia molecular todas as receitas precisarão ser testadas de uma ótica científica, os livros de culinária deverão ser reescritos, as faculdades de gastronomia necessitariam ser refundadas e os críticos de gastronomia precisariam recalibrar seu olhar cético, reciclando-se nos livros de química e física para poder julgar se os chefs extraem da matéria, de fato, o melhor que ela pode dar para a satisfação e o prazer humanos.

É claro que nada disso acontecerá, ao menos de imediato, pois assim como os íons se ligam uns aos outros, também a tradição está solidarizada por interesses econômicos, preconceitos, desconfianças e, claro, uma crença remanescente na magia.


Nós não comemos símbolos


Talvez o impacto mais profundo da gastronomia molecular sobre a cultura culinária seja mesmo a discussão sobre o que fazer com aquela parte “inútil” das receitas – as “precisões”, os truques, os ditos tradicionais. Damos risada quando ouvimos que mulheres menstruadas não conseguem fazer bolos (“embatumam”) ou “desandam” maioneses, mas ainda acreditamos que, ao fazer uma emulsão, os ingredientes devem estar na mesma temperatura.

Ora, o que fazer com os conhecimentos tradicionais de nossas avós, que nos ensinaram seus “segredos” numa cadeia de transmissão da tradição que, em grande parte, nada mais são do que uma coleção de equívocos sobre como chegar a um bom resultado? O que farão os antropólogos que acreditam que só se consegue preservar o bom acarajé se preservarmos sobretudo as “baianas do acarajé”, inclusive com seus trajes, tabuleiros e técnicas do século 19?

Claro, tudo isso é muito poético, mas é preciso reconhecer que não comemos símbolos. Os símbolos se erigem sobre uma materialidade qualquer, visto que as idéias não se apóiam no ar. Portanto o tratamento culturalista da culinária precisa se realinhar com o novo conhecimento aportado pelo desvendamento dos processos físico-químicos subjacentes a qualquer ato simbólico. É claro que a alimentação constitui símbolos identitários, como toda sorte de linguagem, mas o mundo não acabou quando se descobriu que a terra girava em torno do sol.

Os relativistas dirão: a química é equivalente ao pensamento mágico dos Ianomami enquanto explicação do mundo, inclusive do que se passa na cozinha. Não será a primeira nem a última vez em que a universalidade das ciências físicas e químicas é contestada. Mesmo assim, conhecendo exatamente como se dá a coagulação da clara e da gema do ovo, insistiremos nos velhos métodos? Ao descobrir que a carne ficará tenra numa cocção prolongada a baixa temperatura, insistiremos nos assados que destroem as suas melhores características?

É preciso perceber também que uma concepção materialista do cozinhar é oposto ao glamour sob o qual se apresenta a gastronomia atual. Ou, em outras palavras, uma nova glamorização precisará se desenvolver a partir de bases técnicas e tecnológicas renovadas se quisermos manter a sedução do comer na sua forma moderna, pois é evidente que as relações sociais sobre as quais se apóia a alimentação são mais importantes do que o conhecimento físico-químico sobre os processos empíricos do fazer culinário. Mas a velha “arte” culinária precisará se renovar, sob pena de parecer um estilo rococó à luz de um estilo Bauhaus.


A renovação esperada


Hervé This veio ao Brasil para lançar uma edição especial da revista “Scientific American Brasil” sobre “A ciência na cozinha”. Suas palestras, assistidas por mais de 1.200 pessoas, ajudaram muito a desfazer confusões.

Por exemplo, aquela que normalmente se estabelece em torno da aproximação dos resultados das suas pesquisas com a “culinária molecular”, que é o termo que ele mesmo cunhou para designar as aplicações feitas por chefs de vanguarda, como Ferran Adrià, em suas famosas “espumas”, “esferificações” etc.

Adrià, cujo senso de oportunidade é notável, logo percebeu que no centro da nova culinária está a pesquisa e a experimentação. O seu famoso taller nada mais era do que uma unidade de investigação de processos físico-químicos e suas aplicações na construção de alimentos modernos.

Pouco se sabe sobre a química dos nossos produtos autóctones, como as frutas da Amazônia, as variedades da mandioca etc. Sequer sabemos se o modo de fazer o pão de queijo é o melhor possível. O que dizer sobre a construção da própria qualidade do leite, hoje em crise, ou do prosaico queijo minas? A tradição não garante a qualidade, é apenas o ponto de partida da sua investigação e desenvolvimento num processo que, é claro, poderá reafirmar a “sabedoria” de muitos procedimentos datados de longo tempo. Sem a investigação jamais se chegará a estas certezas.

Hervé This é de opinião que a culinária tradicional européia é ainda, em boa medida, comandada pela Idade Média. Nós, que tanto discutimos sobre as origens ibéricas em vários domínios da cultura, precisamos agora passar a considerar essa vertente da formação nacional também na cozinha.

Um livro recente de Cristiana Couto (“Arte de Cozinha”, Senac, 2007) bem mostra como, dentro dos nossos primeiros livros de cozinha, viajavam os velhos livros de cozinha da tradição portuguesa e, dentro desses, os livros franceses. A formação culinária é apenas mais um caso de difusão cultural, embora os historiadores, sociólogos e antropólogos brasileiros só agora comecem a se dar conta disso.

Do ponto de vista da gastronomia molecular, a novidade será o curso regular que a Esalq-USP passará a oferecer, a partir de 2008, sob essa denominação. Ainda que com uma defasagem de mais de 15 anos, é de se esperar que cientistas e chefs brasileiros, debruçados sobre produtos autóctones, possam lançar a luz da ciência sobre o que comemos há séculos.


Carlos Alberto Dória

É sociólogo, doutor em sociologia no IFCH-Unicamp e autor de "Ensaios Enveredados", "Bordado da Fama" e "Os Federais da Cultura", entre outros livros. Acaba de publicar "Estrelas no Céu da Boca – Escritos Sobre Culinária e Gastronomia" (ed. Senac).



terça-feira, 19 de fevereiro de 2008

Eso es feo, niños!



O empório do seu Manuel anuncia um pacote de 20 kg de arroz agulhinha por 10 reais. A freguesa, atenta ao orçamento doméstico, deixa de comprar no supermercado, onde 5 kg custam 8 reais, e corre para a vendinha do seu Manuel. Mas quando vê o produto, constata tratar-se do mesmo pacote de 5 kg que podia ter comprado por 8 reais. Seu Manuel explica: “Tem que cozinhaire com bastante água. Depois de bem cozido é que vai pesaire 20 kg.”

– Isso é desonesto, seu Manuel. Tem de anunciar o peso do arroz cru!

– Ó dona Maria... Ninguém come arroz cru...

Se a freguesa achou graça na anedota, tente rir desta outra versão: o serviço de internet banda larga Espide é vendido exatamente assim. A vítima paga pelo acesso de 1 mega, mas a Telefonica, com ou sem circunflexo, só garante o funcionamento em 10% da velocidade. Isso está no contrato! A velocidade “chega” até a 1 mega. Neste momento, minha conexão de 1 mega está com 31% disso, apenas. Talvez, cozinhando com bastante água...

Para o Espide, a explicação do seu Manuel não serve. Espide, a gente engole cru; não tem cozimento que faça subir a velocidade quando fica baixa. Pior é que fica baixa com freqüência. E não raro se paga banda-larga e recebe-se um serviço de pisca-pisca, que cai o tempo. Mas os mal-intencionados fornecedores do (mau) serviço continuam oferecendo 1 mega, com a garantia de fornecer apenas 10%. Não é uma atitude honesta, para dizer o mínimo. Eso es feo, niños. Sus madres no les hablaran?

Esses muchachos estão pensando que eu sou palhaco, é?

GC



Hoje tem marmelada?

Temos a satisfação de informar a nossa distinta freguesia que conseguimos convencer o Palhaço Guarda-Chuva a cerrar fileiras conosco neste Meia-sola.

Homem ocupadíssimo, GC, como é chamado nas altas rodas – "e também na rodinha de baixo", diz ele –, somente aceitou o convite depois de muita instância de nossa parte e da ameaça de apresentar um certo cheque sem fundos. A hilariante figura desempenhará as funções de repórter, redator, editor, ilustrador, fotógrafo, segurança, recepcionista e moça-do-cafezinho. Ou o cheque vai para o banco.

Conquanto se trate de um artista por demais conhecido, estamos providenciando uma pequena biografia de GC, que oportunamente publicaremos nestas páginas. Por enquanto, freguesa, basta saber que, a partir de hoje, tem marmelada sim senhora.


O Editor



Conselho para homens públicos


Uma explicação começada por “Oia” parece muito mais honesta do que as que começam por “Veja bem”. Pelo menos parece.


GC

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2008

Valentinianas (2)


No dia 11 dona Ambrozina completou 80 anos. E está inteiraça, a Velhinha. O telefone tocou o dia todo, com gente ligando para dar-lhe os parabéns. Afinal não é todo dia que se completa 80 anos. Ainda bem. Muitos amigos preferiram dar uma passadinha rápida para dar um beijo na Velhinha, e isso chamou a atenção de uma vizinha, dessas que fiscaliza o que se passa na rua. No dia seguinte, ela abordou os velhos:

– Tá tudo bem, dona Ambrozina? Eu vi bastante movimento ontem aí...

– Tudo bem, sim, obrigada. É que eu fiz aniversário ontem.

– Ah, então meus parabéns! – e entendendo que fosse aniversário de casamento, estendeu os cumprimentos a seu Valentim que, como sempre, foi rápido no gatilho:

– O aniversário é dela, mas acho que você tem razão. Nós somos casados com comunhão de bens, então o que é dela é meu também.


• Celso Paraguaçu •

Valentinianas (1)



Seu Valentim, ao ver um filme que mostrava o vôo do 14 BIS:

– A grande glória do Santos Dumont não foi ter inventado o avião. Foi ter inventado um avião que voava para trás.

• Celso Paraguaçu •

Abaixo a inclusão digital


De vez em quando surge uma expressão que toma conta do falar das pessoas. A freguesa deve se lembrar do “a nível de”, não? Todo mundo falava “a nível de”. E isso não queria dizer nada, só dificultava a construção das frases. “Tá com fome, cara?” e o outro: “É, a nível de comida, estou sim.” Nos últimos anos surgiu a moda de dizer “com certeza”. Usa-se como uma vírgula colocada após o ponto final. Também substitui as reticências. É muito útil para quem não tem o que dizer, mas tá doido de vontade de falar. Felizmente já está perdendo força.

É difícil saber como começam essas modas, mas é preciso estar atento para evitar as besteiras. A inclusão digital é um bom exemplo.

Essa dá até para desconfiar de onde veio. Todo mundo andava falando em inclusão social e alguém teve a brilhante percepção de que se o carinha não tivesse acesso à internet não conseguiria se inserir na sociedade. Mas alguém teve a infeliz idéia de batizar isso de inclusão digital, para ficar parecido com inclusão social. E pegou. Os governos, nas três esferas, adotaram o discurso da necessidade da inclusão digital. E na maioria dos casos, limitaram-se ao discurso. A Igreja reconheceu a importância da inclusão digital. Criaram-se até ONGs para promover a inclusão digital.

E alguém pensou no que é exatamente a inclusão digital? Não. Ficam repetindo uma besteira que alguém inventou, papagaiando. É só pensar um pouco. Inclusão todo mundo sabe o que é: pega-se alguma coisa que está do lado de fora e coloca-se dentro. Inclusão é pôr alguma coisa no meio de outras. E digital é relativo a dedo. O carimbo do polegar chama-se impressão digital, ou seja, a marca que o dedo imprime. Portanto, inclusão digital significa colocar o dedo dentro, ou no meio. Ui!

Tem quem goste. Mas não é todo mundo. Confesso que eu ficava meio assustado quando via pessoas do governo, da igreja e das ONGs falando em colocar o dedo dentro. E tinha uns caras com cada dedão! Tou fora! Comigo não! Não se pode sair por aí enfiando o dedo indiscriminadamente! Essas coisas não se fazem por lei, nem no atacado. Tem de conhecer o público-alvo, saber quem gosta e quem não gosta. E não basta gostar, tem de querer. É uma coisa pessoal, muito particular, e varia conforme o momento. Tem de pintar um clima.

Desconfio que as entidades que defendiam a inclusão digital assumiam-se como incluidoras. Se alguém chegasse com o dedinho querendo enfiá-lo no governo, ou na ONG ou na igreja, será que os donos das instituições deixariam? Inclusão digital nos outros é refresco. Eu nunca vi numa favela uma faixa com os dizeres “inclua seu dígito aqui”. Nem naqueles classificados de desclassificadas dos jornais tinha disso. Ou alguém leu algo como: “AAA Sheyylla loira espetacular universitária completa. At. motel/resid. Aceita inclusão digital”?

A coisa não funcionou, ninguém mais fala nisso. Felizmente. Era só discurso, como quase tudo que é bom. Mas penso que inclusão digital não era muito bom. Todo mundo queria enfiar o dedo, mas não tinha em quê. Ou em quem. O sábio Stanislaw Ponte Preta, também conhecido como Sérgio Porto, dizia, ainda na década de 1960: “Rabo e conselho só se deve dar a quem pede”. Esse é um conselho que ninguém pediu, mas é bom. A inclusão digital também devia ser tratada assim.

• Celso Paraguaçu •



quarta-feira, 13 de fevereiro de 2008

Um homem comum. Mijão, porém comum


Kazumi era um homem comum. Nascido no Japão, mas morando no Brasil havia vários anos. Em São Paulo, no bairro da Liberdade. Os pais, velhinhos, moravam com ele, na casa que ficava no fundo do modesto botequim, seu meio de vida. Como filho mais velho, coube a ele cuidar dos pais, quando envelheceram. Dos pais e do botequim. Assim era a tradição. Os dois irmãos mais novos, que puderam estudar, permaneceram no Japão, casaram-se, formaram famílias. Ele não. Tinha só os pais, velhinhos, e o botequim. De resto, era um homem comum.

Kazumi falava um português nipônico com sotaque muito carregado. Afinal, só precisava do português para conversar com os fornecedores de bebidas e cigarros. Com a freguesia podia falar em japonês mesmo. Podia, não; era obrigado, pois falavam em japonês com ele. Tinha dificuldade para pronunciar o som da letra L – dizia “ére” – e tinha grande dificuldade com as consoantes frouxas, que não eram seguidas por vogais. Por isso a cerveja Antártica, no bar do Kazumi, chamava-se Tátchica. Ele também tinha Borama e Kaisa, e a mais vendida, a Sikoru. A cerveja gelada era a companheira ideal do camarãozinho na bosta, frito inteiro, com patas, casca e cabeça, apenas passado no creme de fazer tempurá. Os fregueses, praticamente todos descendentes de japoneses, gostavam do camarão frito de Kazumi.

Afora o sotaque, Kazumi era um homem comum, de seus quarenta e tantos anos, dono de um modesto botequim comum. Por isso estranhou quando aquele trio de brasileiros – pelo menos pareciam brasileiros – sentou-se na única mesa do bar. A maioria dos fregueses, conhecidos de muitos anos, preferia ficar no balcão para trocar um dedo de prosa. Em japonês.

Os caras chegaram mais ou menos à uma hora da tarde, e queriam saber o que tinha para o almoço. Ora, o que tinha para o almoço! Era claro que não eram fregueses, pois estes nunca perguntavam o que havia, já que a comida era feita na hora. Tinham de dizer o que queriam.

– Tá vendo a diferença, Rodrigues? – Disse o de barba. – Eles fazem a comida na hora que você pede, não é nada requentado, não é “self service ao perdigoto”. É comida feita na hora.

– Também! Não precisam cozinhar! Eles comem o peixe cru!

– Mas você não precisa pedir peixe cru, que eu também não gosto muito. Tem o sushi...

– Sushi non faz – atalhou rapidamente o Kazumi.

– Ah, mas tem yakisoba, que parece macarronada com vegetais, tem o tempurá, que é uma delícia, tem peixe frito, aquele arroz grudadinho, os mais diversos vegetais com tempero adocicado, gergelim e vinagre de arroz, uma delícia. Não tem nada a ver com esses restaurantes japoneses modernos. Aqui é comida japonesa do dia-a-dia. Os restaurantes japoneses modernos têm como maior atrativo o sushiman, que faz o sushi na hora, na sua frente, mas...

– Sushi non faz – repetiu Kazumi preocupado.

Se os fregueses insistissem no sushi, ele teria de ir buscar nalgum vizinho as algas pretas que servem para enrolar a massa de arroz. E Kazumi não se considerava um bom sushiman. Bons nessa tarefa são os cearenses, como se pode observar em muitos restaurantes japoneses de São Paulo. – Sushi non faz – insistiu ele mais uma vez, com aspecto sério.

– Tudo bem, nós não queremos sushi. Acho que vou querer um yakisoba com shiitake e uma boa porção de tempurá. Tem camarão?

– Craro! Camarô bom! Camarô tempurá! Bom! – Disse feliz o Kazumi, que finalmente poderia oferecer ao freguês sua especialidade.

– E peixe frito, tem? – Perguntou o Rodrigues.

– Peixe furito tem. Non tempurá. Só assim furito.

Rodrigues não entendeu direito, mas pediu assim mesmo, com uma porção de arroz. Aí o César, o terceiro elemento, abriu pela primeira vez a boca para exibir toda sua sabedoria:

– Ô Carlinhos, você que conhece o homem, pede logo para ele trazer um pouquinho de cada comida e a gente vai experimentando.

– Eu não conheço não. Só vim aqui uma vez. Mas a comida é decente. E a cerveja é bem gelada.

A sabedoria cesária prevaleceu e Carlinhos tratou de explicar ao Kazumi o que a moçada queria. Kazumi pareceu feliz com o pedido. Muitos pratos que ele sabia preparar nunca eram pedidos. Agora teria oportunidade de exibir seus dotes culinários, apresentando a cozinha japonesa para uns brasileiros meio estranhos, mas que pareciam ser gente boa. Já na cozinha, que consistia em um balcãozinho e um grande tacho em formato de calota de Fusca antigo na outra ponta do balcão, Kazumi estica o pescoço e fala para os fregueses: – Sushi non faz. – Só para ter certeza.

– Tá bem, sushi non faz. Traz uns saquês para a gente de aperitivo.

– O meu, quente, faz favor – pediu Rodrigues.

– Ué! Você conhece saquê?

– Ah, meu caro, você não conhece meu passado. Já nadei de braçadas nessa cultura oriental. Tive até uma namoradinha japonesa!

– E ela bebia muito saquê?

– Não, não bebia nada. Mas era quente...

Kazumi ficou feliz ao ouvir as risadas. A piada ele não ouviu, mas freguês que ri na mesa é bom sinal, bebe bastante cerveja. A tarde prometia.

Tirando a Galvão Bueno e umas outras poucas ruas com mais comércio, a Liberdade era um bairro calmo. Nas tardes de calor Kazumi freqüentemente cochilava no balcão, esperando algum freguês que viesse comprar cigarros. Pouca gente passava na rua. Carros, sim, mas pessoas a pé, que pudessem pelo menos cumprimentá-lo, abaixando a cabeça e dando um sorriso, mesmo sem entrar no botequim, eram raras. Aquela tarde decerto seria mais animada.

Kazumi escolheu os copinhos mais bonitos para os saquês. Dois redondinhos de porcelana para os gelados e um quadrado, laqueado, para o morno. Gostou de ver quando Rodrigues insistiu para que os companheiros experimentassem o saquê morno no seu próprio copo. E todos riram da dificuldade que César teve para abordar um copo quadrado com uma bebida desconhecida que ele imaginava estar muito quente.

– Vai no cantinho – disse Carlinhos.

– Ah-ah-ah, no cantchinho – riu Kazumi.

– Não é assim? – perguntou Carlinhos.

– Hai! No cantchinho! Hai!

É, a tarde prometia. Os brasileiros eram simpáticos, alegres. Iam beber muita cerveja, rir muito e Kazumi ia se divertir. Ou talvez não. Talvez ficassem no saquê como aperitivo, almoçassem e depois tomassem um chá na hora de ir embora. Ah, não! Kazumi ia usar de toda sua ciência para segurar os fregueses um bom pedaço da tarde. Precisavam beber cerveja. Afinal, a cerveja era o que dava mais lucro no botequim. A comida era barata e o ganho era pequeno. E desde que a Abadia foi-se embora, o movimento andava fraco. Era bom ter uma companhia alegre para a tarde, mesmo que fosse a de desconhecidos.

Rapidamente pegou um fogareirinho de mesa, que não usava desde muito tempo atrás, botou uma panelinha com água já quente sobre o fogo e levou aceso, com a garrafa de saquê morno em banho-maria. E pegou mais dois copinhos laqueados quadrados, daqueles que fizeram sucesso. Os caras gostaram. Voltou para a cozinha e rapidamente fritou um punhado de cogumelos shiitake na manteiga. Eram um ótimo tira-gosto. Deu certo. Antes mesmo que começasse a levar mais comida para a mesa a garrafinha de saquê esvaziou. Mais uma garrafinha, agora acompanhada de pedacinhos de peixe frito. Costumam chamar isso de isca de peixe, mas Kazumi sabia muito bem que isca de peixe era minhoca, porque aos domingos ele ia se divertir num pesque-pague da periferia. E ele jamais serviria minhocas para os fregueses. A menos que insistissem. Tempurá de minhoca. Kazumi riu de suas idéias atrapalhadas.

A segunda garrafa de saquê morno reforçou o calor que fazia naquela tarde, por isso não esvaziou. Mas os pedaços de peixe frito sumiram rapidamente. Assim que levou o primeiro prato – gamelinhas de missoshiru, a gostosa sopinha de massa de soja com pedacinhos de tofu, mais uns mariscos que Kazumi achava essenciais, e cebolinha verde picada por cima – Kazumi percebeu que o consumo de saquê havia caído. “É a hora!”, pensou, e ofereceu:

– Tátchica, Borama, Kaisa, Sikoru?

Silêncio. Os três fregueses ficaram paralisados, com os palitinhos no ar. Mas durou pouco o susto. Carlinhos rapidamente compreendeu:

– E aí, vamos tomar uma cerveja? Qual está mais gelada?

– Tudo djerado. Bom djerado.

– Que marcas você tem? – perguntou maliciosamente César, só para ouvir novamente a frase misteriosa. Rapidamente Kazumi recitou seu mantra:

– Tátchica, Borama, Kaisa, Sikoru – desta vez sem interrogação.

As três primeiras, tudo bem, mas a Sikoru pareceu a César ser uma marca estranha, provavelmente japonesa. E ele achava que precisava conhecê-la.

– Essa última aí. Eu quero dessa última.

– Sikoru, hai.

– É. – confirmou César. – Sikoru Hai.

– Ué, você bebe Skol? – estranhou Rodrigues, que achava que se podia conhecer o caráter de uma pessoa pelo que ela bebia. E César tinha todo o jeito de quem bebia Brahma.

– Não, eu pedi essa Sikoru Hai.

– É Skol!

– Não, deve ser alguma marca japonesa.

– É Skol, cara. Sikoru, em japonês!

– Sikoru, hai. – assegurou Kazumi, que aguardava a decisão dos fregueses.

César, ainda em dúvida, perguntou diretamente a Kazumi:

– Essa Sikoru Hai é a Skol?

– Hai! Sikoru, hai! Redôôôôônido! – respondeu Kazumi sorridente, enquanto fazia um giro com o indicador.

Novas gargalhadas, vai Skol mesmo, quem sabe agora está boa, se estiver gelada é boa, gelada em cima da mesa até minha sogra é boa, mais risadas... Agora a coisa estava indo bem. Hora de levar a cerveja e o yakisoba, que todo mundo gostou. A manteiga da fritura do shiitake estava ainda no fundo da enorme calota de fusquinha antigo, de modo que deu um saborzinho todo especial aos legumes coloridos que cobriam fartamente o macarrão. Kazumi estava feliz. Os fregueses estavam gostando da comida e da bebida. Do serviço, ele nem se lembrava, porque isso era obrigação. Mas gostava de ouvir um elogio à comida, o que era muito raro, desde o tempo da Abadia. Ela gostava muito da comida que Kazumi fazia. Comia bastante.

Maria da Abadia era uma goiana de seus vinte e poucos anos que Kazumi contratara como garçonete alguns anos antes. Não era nenhum espetáculo de mulher, embora não fosse feia, mas tinha certos atributos que faziam muito sucesso entre os moradores da Liberdade, sobretudo os mais velhos. Sorridente, educada e calada, vestia-se com simplicidade e discrição. Seu uniforme era um vestido cinza claro, reto, abotoado na frente, e comprido até a altura dos joelhos. Parecia um guarda-pó. Por cima do vestido, um avental branco. E era aí que morava o perigo. As tiras do avental, quando amarradas, faziam com que o vestido modelasse o corpo de Abadia e revelasse a diferença de potencial entre a fina cintura da moça e seus portentosos quadris. Quem conhece eletricidade sabe que diferença de potencial é o mesmo que voltagem, tensão. Alta voltagem, no caso. Alta tensão.

Os velhinhos, que eram maior parte da freguesia, ficavam no balcão tagarelando em japonês e calavam assim que a moça se dirigia para a “cozinha” para buscar uma cerveja no balcão refrigerado que ficava no fundo do botequim. Eram uns dez passos, se tanto, mas muito bem pisados, modulados pelas nádegas da moça, que deslizavam por debaixo do vestido. Os velhinhos paravam de beber, paravam de falar, paravam de rir e alguns até de respirar, com medo que a mais tênue brisa pudesse romper o encanto da cena.

– Badjia! Sikoru!

E lá ia ela buscar a cerveja, para o deleite de todos os olhos apaixonados pelos encantos de Abadia. O movimento das cadeiras de Abadia fazia crescer o movimento do botequim. Os velhinhos não tinham nada para fazer e vinham todos ver Abadia andar. Só andar, nada mais. Ficavam todos sorridentes quando ela andava; não diziam palavra, e davam mais uma bicadinha na cerveja. Blim-blim na caixa registradora, tum-tum-tum afobado no peito de Kazumi. É Kazumi também era apaixonado pela Abadia. Paixão, amor, tesão, sabe-se lá. Ele nunca soube ao certo. Nem ela. Mas que se casaria com ela, se pudesse, casaria. Ele era solteiro, aliás, muito solteiro, solteiríssimo, no mesmo estado que nasceu. E olha que já tinha nascido havia mais de quarenta anos. Casaria com ela, sim, se tivesse tido tempo.

Ela morava na casa, com ele e os pais, mas tinha seu próprio quartinho com banheiro. Kazumi jamais teve qualquer intimidade com Abadia. Nunca a espiou pelo buraco da fechadura. Nem lhe dirigiu qualquer palavra mais atrevida. Nem conversou com ela sobre coisas que não dissessem respeito ao botequim. Apenas ria vaidoso quando ela dizia que ele cozinhava bem. Ele cozinharia para ela o resto da vida, se tivesse tido tempo. Mas não teve.

Um dia apareceu por lá um sujeito vindo de Minas Gerais, Abadia ficou toda agitada, saiu detrás do balcão e abraçou o sujeito como se fossem velhos conhecidos. E eram. Conversaram por quase uma hora na calçada – e a venda de cerveja caiu tremendamente naquela tarde, pois todos os fregueses estavam olhando para a calçada. Se não tinha Abadia andando atrás do balcão, ninguém pedia cerveja. O andar de Kazumi não era a mesma coisa. No dia seguinte, logo cedo, Abadia arrumou a malinha e foi-se embora com o sujeito.

Não era hora de ficar triste lembrando da Abadia. Os fregueses já estavam terminando o yakisoba e estava na hora de levar o arroz. Uma panelona elétrica, que foi plugada numa tomada da parede, e três tigelinhas. E em seguida os peixes, estalando em cima das chapas quentes, cobertos de legumes. E tome Sikoru djerado. Bom djerado!

Enquanto os caras comiam, bebiam e riam, Kazumi continuava na cozinha preparando outras comidinhas. Trouxe uns rolinhos de acelga semi-cozida recheada com pedacinhos de kamaboko frito. O kamaboko, uma espécie de salsicha de peixe, fez grande sucesso, então kazumi os serviu em fatias, salpicados com sementes de gergelim torradas e shoyu. Mais Sikoru.

A certa altura da festa, um dos brasileiros chama o Kazumi, pergunta seu nome e começa a conversar. Poucos minutos mais tarde já havia quatro companheiros na mesa bebendo cerveja. Kazumi nunca tinha feito uma farra daquelas. E tome cerveja. Sikoru. Aí o Rodrigues começou a contar de sua experiência no seio da colônia japonesa. No seio, nas coxas, na cinturinha, uma delícia de experiência. Kazumi ouvia comovido, porque o Rodrigues, já tocado pelo álcool, falava como se a ex-namoradinha fosse a jóia mais preciosa que ele já tivera nas mãos e deixara escorregar por entre os dedos. Coisa de bêbado.

Como costuma acontecer entre amigos tocados pelo álcool, as emoções de um suscitam as lembranças dos demais. E tome cerveja. Enquanto César contava uma de suas desventuras amorosas, Kazumi levantou-se para fritar camarõezinhos passados no creme de tempurá. E os trouxe para a mesa, com mais Sikoru, exatamente quando César cai no choro. Era a vez de Carlinhos, que também tinha perdido um grande amor. Todos perderam um desses. E quem não perdeu, com umas tantas cervejas na cabeça, inventa na hora um grande amor perdido. Alguns até fazem músicas sertanejas. Sobretudo porque os interlocutores também estão mamados, não estão atentos a detalhes. E tome Sikoru. Kazumi também já estava ficando alto e então contou a história de Abadia.

O chorão César, debruçado sobre a mesa, levantou a cabeça assim que Kazumi começou a falar. Foi ele o que mais se envolveu com a história. Mas foi Rodrigues quem arriscou uma pergunta tendendo para a sacanagem: “mas não rolavam nem uns beijinhos?” Kazumi nem respondeu. Continuou a história deixando claro que sempre teve o máximo respeito pela moça. Quando chegou no fim, a malinha pronta logo de manhã e o cara de Minas vindo buscá-la, foi um choro só. A cena doeu. Choravam os quatro. E tome Sikoru.

Anoiteceu, Kazumi baixou a porta do botequim, e voltou para a mesa onde estavam seus agora amigos. E tome Sikoru. Quando começava a sentir um pouco de tontura, Kazumi se levantava, fritava mais uns camarõezinhos e voltava para a mesa, com mais duas garrafas. A conversa tinha voltado a ser alegre, contaram-se piadas, explicaram todas a Kazumi, riram muito e tomaram mais cervejas. Foi Rodrigues, e não Kazumi, quem se levantou para colocar mais garrafas na geladeira. E mais tarde Kazumi deu sua receita secreta do creme para tempurá enquanto ensinava Carlinhos a fritar camarões. César estava no banheiro.

Altas horas, ninguém sabe quantas, um dos quatro resolve que precisam ir embora. Pedem a conta, mas Kazumi não faz a menor idéia de quanto seria. Carlinhos resolve contar as garrafas de cerveja. Enquanto estiveram lá, desde a hora do almoço, Kazumi não chegou a vender uma dúzia de cervejas para outros fregueses, então a turma resolveu assumir que todas as garrafas vazias foram bebidas por eles. Pagaram inclusive o que Kazumi bebeu.

– Comida non! – Exclamou Kazumi.

A comida era por conta dele. Valeu o prazer de eles terem gostado. Saíram os quatro, Kazumi fechou por fora a porta do botequim e foram procurar um táxi, Kazumi com eles. Pegaram o caminho errado e, quando perceberam já estavam no viaduto, em cima da 23 de Maio.

– Vou dar uma mijada – disse Carlinhos.

– Aqui? – perguntou assustado o Rodrigues.

– A esta hora, que é que tem?

– É, acho que tudo bem.

Quatro marmanjos bêbados, em plena madrugada, mijando do alto do viaduto Jaceguai nas pistas da 23 de Maio. Kazumi, que nunca fez coisas erradas na vida, ria a ponto de estourar enquanto urinava nos carros que passavam na avenida lá em baixo. Mijava-se de rir e ria de se mijar. Nunca, em seus mais de quarenta anos de idade, tivera uma alegria tão intensa. Nem uma festa tão intensa. Nem sentimentos tão intensos. Nem uma bebedeira tão intensa.

No outro dia havia quatro cabeças estourando de dor. E muita sede. Foi Rodrigues quem, no fim da tarde, ligou para o Carlinhos. Eles achavam que deviam dar uma passadinha no botequim do Kazumi para ver se o amigo estava bem. Parecia claro para eles que o sujeito não estava muito acostumado com a bebida. Além disso, logo depois da mijada homérica, pegaram um táxi e deixaram Kazumi lá, tendo de voltar para casa sozinho. Convocaram César e foram os três até o botequim na Liberdade.

Encontraram a porta fechada e alguns velhos moradores do bairro na calçada conversando – em japonês. Céus! O pensamento que passou pela cabeça dos três foi o mesmo: “Matamos o Kazumi.” A primeira idéia de Carlinhos foi de irem embora e voltarem num outro dia, depois de passada a comoção, para se inteirarem de como foi o ocorrido. Mas Rodrigues disse que isso seria uma covardia. Se eles foram os responsáveis, tinham de assumir sua culpa. Desceram do carro e chegaram, devagar, perto de dois velhinhos que conversavam baixinho.

– Boa tarde – iniciou Rodrigues. – O Kazumi... ?

– Hodje non ábore baru. – respondeu um tanto secamente um dos anciãos.

– Mas o que aconteceu com o Kazumi? – foi mais direto o Carlinhos.

– Kazumi non tá. Baru non ábore hodje.

– Não tá? Então onde ele está?

– Kazumi pureso.

– Preso? Na delegacia?

– É. Deregacia. Pureso.

Os semblantes dos três amigos se iluminaram. Kazumi não estava morto, estava apenas preso! Iriam agora mesmo à delegacia saber o que houve. Ele não estava morto! Iam conversar com o delegado.

– Peraí, e se for algum lance de contrabando ou de drogas? A gente aparece lá perguntando pelo Kazumi e vira suspeito. Podemos até ficar presos!

– Pô, Carlinhos, – interveio César – você acha que o Kazumi pode estar metido em algum rolo desse tipo? O Kazumi? Se ele nem olhou pelo buraco da fechadura para ver a Abadia trocando de roupa, ia se meter com o crime organizado?

– Mas ele é bem organizado; você viu que mesmo bêbado ele fritava os camarões direitinho.

– Você também fritou quando estava borrachão.

– É, mas sob a supervisão dele.

– Pára, gente! – interrompeu Rodrigues. – O cara frita camarão desde que nasceu, isso não tem nada a ver. Precisamos ver o que aconteceu com ele, saber por que ele está preso. Claro que não é tráfico. Mesmo contrabando, se for é coisa pequena. A polícia só quer saber quem são os grandões, peixe miúdo não interessa. – E os três se lembraram do peixinho frito, logo no começo da farra.

Mais uma vez, foi César quem trouxe a idéia. Um deles iria conversar com o delegado para saber o que houve. Se não ligasse para os demais até duas horas mais tarde, os outros iriam atrás do primo do César, que era advogado, para preparar um habeas corpus ou qualquer coisa que servisse para tirar alguém da cadeia. Só faltava decidir quem ia ser o herói. O próprio César se ofereceu. Ele iria, de bom gosto. Afinal, o advogado era primo dele. Sua única dificuldade é que se o delegado também fosse japonês ele poderia não entender qual era o problema. Carlinhos e Rodrigues assumiram a tarefa ao mesmo tempo. E combinação mudou. Iriam os dois e se nenhum deles telefonasse para César, este deveria ir à delegacia já munido de advogado e habeas corpus para todo mundo.

O esquema armado era bom, mas não foi necessário. Quando chegaram à saleta do delegado, os dois já viram Kazumi sentado no banco, de cabeça baixa, como quem havia levado uma bela carraspana. O delegado explicou que os policiais da patrulha o prenderam por atentado ao pudor, urinando na 23 de maio de cima do viaduto Jaceguay. Segundo o boletim de ocorrência, ele urinava “em leque” e fazia “tatatatatatá”, como se fosse uma metralhadora.

Já a caminho do botequim, Rodrigues dirigia, Kazumi ia calado – envergonhado, talvez – e Carlinhos explicava a César, pelo celular, que o japonês fora preso por terrorismo, pois estava metralhando carros na 23 de maio, de cima do viaduto. Enquanto Kazumi não chegava, César tentava explicar aos vizinhos que o cara estava bem e já estava chegando, mas parece que ninguém entendeu, ou não deu muita atenção.

Logo, porém, o carro parou na calçada e descem os dois amigos e Kazumi. Palmas, vivas, banzais, Rodrigues e Carlinhos viraram heróis. Parece que Kazumi era muito querido na vizinhança. Fizeram-no abrir o botequim para oferecer cerveja aos heróis. Mas eles já tinham bebido tudo que podiam para os próximos três meses. E o bar estava uma lástima, com comidas, pratinhos, pauzinhos, tigelinhas, panela, fogareiro e garrafas em cima da única mesa desde a véspera. O arroz, na panela elétrica, estava azedo, mas conservava-se aquecido. Boa panela. Um cheiro de fritura e cerveja azeda tornava difícil a respiração. Era melhor ir embora logo. Despediram-se de Kazumi, certificando-se de que ele estava bem, que não tinha apanhado nem sofrido algum tipo de violência física.

– Vem outro djia! – convidou Kazumi – Comida non paga, só Sikoru.

– Tá bem, a gente volta sim. Tudo de bom.

Já no carro, César, no banco de trás, começa a rir.

– Tava pensando no Kazumi na cadeia, 'tadinho.

– E acha engraçado? – repreendeu Rodrigues.

– É, imagina a cena. Ele ali, no chiqueirinho, com uns tantos meliantes e facínoras. Aí um sujeito do lado dele, sem camisa, todo cheio de tatuagens de caveiras com punhais cravados, pergunta, estranhando a figurinha do Kazumi: “qual é tua bronca, ô japonês?” E o Kazumi: “Buronca? Que buronca?” “É, meu, que tu fez pra estar aqui?” “Ahhhh! Midjón! Deu midjón na Bintch-torês.”


• Celso Paraguaçu •