terça-feira, 3 de novembro de 2009

Chez Miojô



O querido amigo Nivaldo requereu nossa expertise de restauranteur com a seguinte consulta:

“Estou pensando em tirar proveito comercial de meus dotes culinários, mediante a abertura de um bar/restaurante intitulado Miojerie – a Casa do Miojo. Só miojo elaborado nos mais diversos tipos de molhos. Haverá também o serviço de Miojo Delivery. Solicito sugestões.”
Depois de profunda análise do mercado e da personalidade do Nivaldo, nos dispomos a responder a sua consulta.

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Caro Nivaldo
Uma miojerie tem tudo a ver com você, que é francamente francófilo, capaz de recitar em francês as fábulas de La Fontaine, com rima e em alta velocidade. Advirto, contudo, que não acredito no modelo delivery para essa especialidade. É que a massa continua sob cozimento no trajeto até a casa do freguês, perdendo o ponto al dente cariado. E você não vai querer comprometer o prato, oferecendo a massa fora do ponto.

O estabelecimento precisa ter mesas, nas quais as pessoas possam saborear as iguarias. Mas nada de fast food. Resista à tentação de fazer um “Miojo in the Box” ou um “MacArroni’s”. Sua proposta se encaixa com perfeição num local elegante, para o público adulto recém-chegado ao extrato consumidor da sociedade.

Seria muito adequado um ambiente parisiense antigo, um típico bistrô anterior à Segunda Guerra, antes da contaminação cultural americana. O nome pode ser Chez Miojo, La Cave du Miojo ou algo em francês que remeta à especialidade culinária da casa. Chez Nini ou La Petite Casserole, por exemplo, soam bem, mas não dizem qual é a comida. A menos que seja Chez Nini Miojerie. Pode ser.

Com a música, porém, você terá dificuldade. O ambiente sugere música ao vivo, mas a moderna música francesa soa como americana ou berbere. Tais sons são incompatíveis com a finesse do ambiente. No entanto a música francesa mais antiga não pode mais ser tocada. Não por faltarem bons músicos, mas sim porque não se fabrica mais aquela cansativa sanfoninha deles. O que há de mais parecido é a concertina, a sanfona de oito baixos que ainda se toca no Nordeste. Mas essa serve. Aliás, parece mesmo ser muito adequada à nouvelle cuisine du miojô. Em vez de la balade ou la valse, teremos baião, coco e arrasta-pé, ou le bayon, le coco, le traine-pied.
Naturalmente, você fará os mais deliciosos pratos franceses adaptados ao gosto e ao poder aquisitivo do consumidor brasileiro. Assim, os cariocas poderão degustar seu excelente miojo au haricot noir, em vez do macarrão com feijão-preto que costumam comer em casa.

O restaurante terá nome e aspecto francês, mas a cozinha será internacional e inovadora, bem ao seu estilo. Outra sugestão de prato é o miojo com molho madeira. O molho é de preparo simples, bastando juntar numa casserole um pouco de água, uns cubos de caldo Kitano (mais barato que os demais) e vinho Chapinha de mesa tinto seco, que também será servido na refeição. Para dar o sabor amadeirado, colocam-se no molho algumas lascas de eucalipto, que são retiradas antes de servir. No lugar de champignons, sugiro uns toletes de macaxeira, para promover a aculturação culinária.

Pratos tradicionais de outras cozinhas européias não podem ser esquecidos. E, naturalmente, com o sabor exclusivo da cozinha brasileira. Assim o miojo al aglio e olio será feito com minúsculos dentinhos de alho chinês, muito pequenos para tirar a película. São fritos com película e tudo, no óleo de soja, cujo aroma é inigualável.

Da culinária alemã você trará as saucisses, para um delicioso molho feito à base de salsicha de metro (aquela pintada de vermelho, que em alguns mercados é vendida por quilo, como salsicha a granel) e massa de tomate Arisco. Conhecido como macarrão com “salchicha”, o prato tem grande aceitação junto ao público brasileiro. E certamente ganhará um novo relevo com seu modo de preparar e um nome francês. Talvez chamar as saucisses de sauchiches seja uma boa ideia: miojo avec des sauchiches.

O ponto, ou seja, o local onde instalar a miojerie, é de extrema importância. Os bistrôs parisienses que o cinema gravou em nossa memória ficavam às margens do Sena ou perto do Bois de Boulogne. Não temos um rio tão bonito, nem um bosque parecido, mas você pode montar um simpático bistrozinho à beira do Tamanduateí ou com vista para a Fazenda do Carmo, na Zona Leste. Seria o sonho de incontáveis consumidores recém-chegados ao mercado.

Vejo as mães que vêm buscar seus filhos na escola municipal aqui perto de casa. Enfiam um pacote de “salgadinho” nas mãos das crianças, para irem enchendo o bucho, porque a janta vai demorar para sair. Se houvesse uma miojerie na beira do corguinho da rua de baixo, certamente elas prefeririam oferecer aos petizes um nutritivo miojô avec des sauchiches em vez de entupi-los com essa coisa de isopor com cheiro de chulé.

E nos fins de semana? Esses consumidores não têm aonde ir. Não se sentem à vontade nos shopping centers. Mas lá por perto, tudo bem. Pois ao lado do Shopping SP Market existe um córrego com barrancos cobertos de capim. É o ponto ideal para instalar um trailer da Chez Nivaldo Miojerie. Existem outros trailers, mas são meros botecos; nenhum tem a elegância, a finesse, de uma miojerie.

Em termos comerciais, o ponto c’est ci bon, pois fica em frente à gare Jurubatuba, da CPTM. Em frente à gare, ao lado do shopping center, com vista para o córrego e, o que é melhor, muito próximo do local em que o padre Marcelo faz seu espetáculo religioso aos domingos. Já pensou que fome têm às dez da manhã aquela montanha de fiéis? São milhares deles, ungidos com a água benta lançada com uma brocha, cansados de ficar em pé desde as quatro da manhã e alimentados apenas com um pedacinho do corpo de Cristo. Para o espírito, o alimento pode ser suficiente, mas o corpo pede um miojo avec aile de poule en fricot. O ensopado de asa de galinha dá um molho culturalmente bem aceito no Brasil e remete aos anjos, que são bípedes alados, como os frangos. Os fregueses do padre Marcelo certamente se tornarão seus fregueses também.

Mais ainda. Depois das dez da manhã, quando os bizantinos fiéis do Padre Marcelo vão para casa, chegam os frequentadores da feira-livre montada dois quarteirões acima. Sabendo da existência da miojerie, provavelmente abrirão mão do pastel de ração canina que comem atualmente antes de ir embora. Ninguém em sã consciência trocaria a cozinha internacional com inspiração francesa pela culinária popular chinesa.

Você não pode esperar que o corguinho tenha um aroma agradável. O cheiro é forte e ruim, mas ajuda a compor o clima da miojerie. Remete ao odor da Paris de duzentos anos atrás. E você vai concordar que não há muita diferença entre o cheiro de esgoto do corguinho e o aroma do miojo.

Estou certo de que a miojerie será um sucesso, mas uma questão ainda me preocupa. É que se os chineses inventaram o macarrão, os japoneses inventaram o miojo, que é um spaghetini pixaim. O problema é que no Brasil o pixaim está em baixa. Talvez seja preciso você aplicar a famosa chapinha no miojo antes de preparar os pratos. Vai ficar com aspecto de macarrão espichado, como fica o cabelo das moças, mas elas acharão que está lindo.

Naturalmente essa preocupação estética se refere exclusivamente ao público feminino. Homem come de qualquer jeito, seja liso, pixaim ou com “escova progressiva”. Se a moça tiver uma boa culinária é o que basta.

• PGC •