sexta-feira, 30 de maio de 2008

The show must go on


— E aí Jorge! Como é que vai essa força?

— Oi.

— Ih, tá de lua outra vez, cara?

— É, não tou legal. Me deixa sozinho, faz favor.

— Ah, não, meu. Vamos pôr para cima esse espírito guerreiro.

— Não enche, tá?

— Qual é, Jorjão? Ainda estamos no comecinho do quarto minguante, praticamente lua cheia. Não tem razão para você ficar assim.

— Tem, sim, Drão. Eu perdi tudo.

— Perdeu o quê? Olha toda esta lua, só para nós e aquele seu pangaré. Tem um pouco de lixo que os astronautas deixaram, as bandeirinhas, uns pedaços de lata, aquele jipinho ridículo, mas tem espaço à vontade para nós.

— Não é isso, Drão, é que sou um fracasso, não percebe?

— Você? Quem fracassou fui eu. Quem levou aquela espetada de lança fui eu. Você foi o cara que matou o dragão, virou herói e depois santo, lembra? Eu perdi, você ganhou.

— Você não entende, Drão. Eu perdi a devoção das pessoas. Para um santo, a devoção é tudo; quando perde isso, não tem mais nada. Eu era popular, talvez o mais popular de todos, todo mundo gostava de mim. Até no candomblé eu tinha lugar de honra. Mas as pessoas agora desconfiam de mim.

— Isso é frescura de prima-dona, Jorjão. Nunca ninguém gostou de mim e nunca senti falta disso.

— Então, cara! Você não perdeu porque que nunca teve. Na verdade, até que você é querido atualmente. Tá cheio de filmes, desenhos animados japoneses e jogos eletrônicos em que o herói é um dragão. Ou pelo menos o dragão ajuda o herói.

— Pois agora quem está ficando pra baixo sou eu. Sempre em segundo plano, sempre coadjuvante, nunca o ator principal.

— Mas são histórias humanas, Drão. O herói tem de ser humano, não pode ser o dragão.

— É. Mas você também não tem do que reclamar. Está aí chorando de barriga cheia.

— Como barriga cheia? Eu fui cassado, esqueceu? O papa disse que eu era uma lenda e não podia ser santo. Cassou minha carteirinha! A minha, a do Cristóvão e de mais uns três ou quatro.

—A sua carteirinha já lhe foi restituída. Você recuperou o status de santo. Foi cassado, mas o Vaticano voltou atrás. Desde quando o papa manda mais que um santo?

— Ah, Drão, santo não manda nada. O papa sim. Ele faz leis, éditos, manda e desmanda. Nós, no máximo, fazemos um ou outro milagrezinho.

— Milagrezinho? Você chama de milagrezinho? Você não se lembra do Viola, do Vampeta, do Biro-Biro? E mesmo assim o Timão ganhava um jogo ou outro! Isso não era milagrezinho, não! Era um milagre mesmo! E dos grandes!

— É por isso que estou triste, Drão. Deixaram cair minha imagem em plena procissão do meu dia, lá no Parque. Voou caco para todo lado. Eles não me respeitam mais, perderam a devoção. Acho que foi porque no ano passado não consegui evitar o rebaixamento.

— Também, com aquele time, acho que nem o Nazareno ia conseguir.

— Não brinca, Drão, que Ele pode não gostar.

— É, foi mal. — e, olhando para cima, — Desculpa aí, Chefia! Mas Jorjão, no candomblé a moçada ainda faz muita festa para você.

— Isso é verdade.

— A torcida do Timão ainda te curte muito.

— Bem, eles ainda acendem muita vela...

— E você continua sendo o santo oficial de Portugal e da Inglaterra.

— Portugal, tudo bem, mas na Inglaterra eu já não sei. Os súditos até gostam de mim, mas acho que já não sou mais o santo oficial. Antes a rapaziada gritava “Por São Jorge e pelo Rei” e fincava a espada nos inimigos. Isso até deve ter pesado contra mim, sabia? Como é que um santo podia ajudar o invasor, que vinha roubar riquezas e matar pessoas? Eu não favorecia, você lembra. A gente ficava só vendo a briga, sem beneficiar ninguém. Teve até aquela vez na Zululândia, lembra? Foi triste, fizeram até filme. Os zulus dizimaram o exército britânico. Um massacre!

—Aquela vez foi demais! Não ficou um casaca vermelha vivo, uau! Os zulus deram o maior pau no Império Britânico! Foi da hora, mó legal!

— Você vê que a gente nem torcia pelo mesmo lado. Como é que eu podia ajudar alguém, se você era contra?

— Ah, espera aí, meu! Ninguém pedia minha proteção não. Mesmo porque, eu perdi a luta. Não se pede ajuda de um vencido. Os guligans chamavam o seu nome.

—Evocavam meu nome e passavam os inimigos a fio de espada. Isso pode ter pegado mal, pode ter influenciado o papa, quando ele resolveu me cassar. Eu fiquei arrasado, reduzido a subnitrato de pó de traque. Sabia que mudaram os santos das igrejas antes dedicadas a São Jorge? Tinha uma pequenininha de que eu gostava, bem pobrezinha, que passou a ser de Santa Isabel. Só porque o bairro se chamava Vila Isabel. Já imaginou? Trocaram um bravo guerreiro, como eu...

— Vai devagar, Jorjão. Nem tão bravo assim, hein? Eu tava lá tomando um solzinho, de barriga para cima, você chegou de repente, montado no pangaré, e nem tive tempo de me virar. Você me fincou a lança na goela. Doeu, viu? Ainda dói um pouquinho, quando o tempo esfria.

— Desculpe, Drão, mas eu tinha de fazer isso. Estavam dizendo que você ia comer a princesa.

— E você acreditou? O que esse povo faz de fofoca não está escrito! Cê acha que eu ia comer aquela coisinha magricela, descarnada? Só servia para palitar os dentes. Você não me conhece mesmo. Eu gosto de mulheres mais substanciosas, Jorjão. Com mais carne. Essas magricelinhas, para mim, são verdadeiros dragões.

—Eram outros tempos, aqueles, Drão. Eu era muito jovem, entusiasmado, ia no embalo da torcida. Nem precisava ter princesa na parada. Se a moçada gritava “Mata!”, eu matava mesmo.

— Ahã, desde que o dragãozinho estivesse de barriguinha para cima, tirando um cochilo ao sol...

— Eu já te pedi desculpas mil vezes, né? Não te conhecia, não sabia que você era gente boa.

— É, foi chegando e enfiando a lança... matar primeiro e perguntar depois, tipo tropa de elite.

— Ah, Drão, naquele tempo era assim. Não tinha essa coisa de direitos humanos.

— Draconianos, Jorjão. Direitos draconianos.

— Olha, acho bobagem a gente ficar discutindo isso outra vez. Aquele papa disse que nossa luta nunca aconteceu, que era uma lenda. É isso que somos, Drão, apenas lenda.

— Nós, quem, cara pálida? Eu sempre fui lenda. Pode ser novidade para você, mas eu nunca existi de fato. No passado uns chineses encontraram uns fósseis de dinossauros alados e chamaram aquilo de esqueletos de dragões. Nunca viram um dragão, mas se o esqueleto existia, os animais deviam existir também. Tem lógica, só que não existiam os dragões cujas feições eles criavam. Inventaram uma infinidade de dragões que podiam ter usado aqueles esqueletos. Só que os esqueletos eram de répteis alados extintos.

— É duro, né? Eu também fui rebaixado a lenda, ainda menos real do que você, porque nem tenho um esqueleto que faça supor minha existência. Foi o que o papa disse, uma lenda.

— Mas é o que eu estou te dizendo, Jorjão. Isso já foi consertado, você recuperou seu status de santo.

— É que fiquei magoado...

— Sei...

— E o povo perdeu a fé em mim... Não é mais como antes...

— Deixa disso, boneca. Seus admiradores continuam rezando em seu nome, fazendo promessas e oferendas. Você continua com a bola toda, Jorjão. Chama lá o pangaré e vai buscar sua lança que eu já vou me deitar aqui de barriguinha para cima. Está quase na hora da Lua surgir lá na Terra. The show must go on.

• Celso Paraguaçu •


terça-feira, 20 de maio de 2008

O grande buraco debaixo da Europa



Em julho ou agosto deste ano entrará em operação o Large Hadron Collider, ou simplesmente LHC, como é conhecido entre os físicos. O LHC, que faz parte do Centro Europeu de Pesquisas Nucleares (Cern, na sigla em francês), está instalado em um túnel circular de 27 km de extensão escavado a 100 metros da superfície, em média.

Escavar o túnel deve ter dado uma dor de cabeça danada. A freguesa já imaginou o tamanho do compasso necessário para desenhar um círculo de 27 km de extensão? O raio do tal túnel tem, segundo meus cálculos, quase 4.300 metros. Quem seria capaz de fazer girar esse compassão? E como é que os caras fizeram para traçar o risquinho do compasso 100 m abaixo da superfície? Os engenheiros tiveram de relembrar todas aqueles contas que aprenderam a fazer no cursinho.

Dá para imaginar a cena. Ao lado do operador do tatuzão, a máquina inventada para fazer túneis, vai o engenheiro, usando um daqueles ridículos capacetes de plástico colorido. Tem nas mãos uma pranchetinha de plástico que já vem com calculadora, fabricada na China e comprada no camelô da esquina. De vez em quando, ele faz umas contas, manda parar a máquina, se afasta um pouco, verifica a bússola e diz:

— Mais para a direita um pouquinho, Severino.

Passa um tempinho, ele manda parar a máquina de novo, refaz os cálculos e diz: “Para a esquerda agora, mas não muito.” Severino, como bom trabalhador de obra, obedece sem discutir, mas já percebeu que não vai dar; o fim do túnel não vai coincidir com o começo. Dois dias depois, o engenheiro chega meio sem jeito:

— Severino, vamos ter de voltar uns três quilômetros. Naquele ponto em que você virou um pouquinho para a direita era para ir em frente. E fique de olho no nível, senão a gente sai acima ou abaixo do ponto inicial.

Na cerimônia de visitação do túnel, em 6 de abril passado, ninguém falou quantos inícios errados de espirais foram feitos, caracóis para fora e para dentro do círculo, para cima e para baixo. Foram muitos, certamente. Mas finalmente conseguiram fazer as duas pontas se encontrarem. E aí encheram o túnel de tubos de vidro, de peças de metais variados e muitos quilômetros de fios.

Todo esse trabalho tem uma justificativa. Os físicos querem compreender melhor a Natureza. Farão com que alguns prótons se choquem, cada um vindo de um lado do túnel quase à velocidade da luz e sem freio, para que se dividam em seus componentes fundamentais, os quarks e bósons, partículas responsáveis por três das quatro forças da natureza: eletromagnetismo, atração nuclear forte e atração nuclear fraca. São estas que mantêm os quarks reunidos em porções maiores de matéria, como os prótons. Também permitem que os prótons fiquem grudadinhos, mesmo tendo todos carga positiva. A quarta força é a gravitacional. Os cientistas acham que a força gravitacional fica de fora nesses experimentos. Não fica, mas eles pensam que fica, os tolinhos. O tal do bóson, que explicaria muita coisa, nem se sabe se existe mesmo. Mas os maluc... os físicos esperam detectá-lo no LHC.

A freguesa não precisa se preocupar com as trombadas dos prótons. Nem mesmo se tiver algum parente na Suíça que ganhe a vida prosaicamente, criando meia dúzia de vaquinhas leiteiras nalgum vale 100 metros acima do grande túnel. Não haverá cogumelos atômicos jogando as vacas para o ar. Os choques de partículas não produzirão energia suficiente nem para acender um cigarro. O que, aliás, é proibido no LHC.

Ao compreender melhor os fenômenos físicos da Natureza, os cientistas darão consistência a certas teorias, como o Modelo Padrão. Teoria é uma explicação para um determinado fenômeno. Não passa de uma hipótese, que precisa ser comprovada para ser universalmente aceita e virar Lei da Física. Quando Einstein disse que a luz era desviada por corpos de grande massa (os de pequena massa também a desviam, mas seria mais difícil constatar nestes), foi preciso esperar por um eclipse total do Sol para comprovar se a teoria estava certa ou não. Estava, antes que a freguesa me pergunte.

Conhecer as forças atuantes na Natureza tem muita utilidade. Quando a freguesa deixou cair acidentalmente aquele horrível vaso de porcelana que ganhou da sogra, o que fez, fisicamente, foi expor a pavorosa peça à ação da força da gravidade. O vaso não caiu; foi atraído pela grande massa do Planeta Terra. Ao chegar ao chão houve um choque de forças, a da gravidade contra a da superfície, exercida em igual intensidade, porém em sentido contrário, como explicou Newton. O resultado do choque interferiu nas forças que mantinham coesas as partículas que constituíam o vaso, causando a fragmentação do objeto. Em outras palavras, aquela coisa horrorosa espatifou-se.

Mas o ímã de geladeira com o telefone da distribuidora clandestina de gás de cozinha não cai. Fica grudado como se tivesse algum tipo de adesivo. É a força eletromagnética que o mantém lá, superando a ação da gravidade. A freguesa poderia perguntar de onde vem o “eletro”, se o cartãozinho não tem pilha. A resposta é simples: eletricidade e magnetismo são forças complementares, uma gera a outra. Um ímã é puramente magnético apenas quando está parado. Ao se movimentar, induz uma corrente elétrica em qualquer condutor que esteja por perto. Como no Universo nada está parado, salvo as obras públicas que não dão voto, o ímã de geladeira também é eletromagnético.

Está, pois, explicado o envolvimento de quase 10 mil físicos, dentre os quais 68 brasileiros, e o investimento de quase 9 bilhões de dólares desde 1993 na construção do LHC. Em poucos anos a Ciência permitirá o desenvolvimento de novas tecnologias que propiciarão o aperfeiçoamento dos ímãs de geladeira.

• PGC •