sábado, 23 de fevereiro de 2008

Birca do mato




Estranha a canonização do Frei Galvão. Pareceu um tanto apressada. Outros santos do Brasil estavam na fila havia muito mais tempo, como José de Anchieta, mas foram preteridos. Anchieta não nasceu no Brasil, ao contrário do franciscano, mas havia um punhado de beatos que brotaram desta terra e já tinham passado pela etapa da beatificação. E ainda outros com alto potencial milagreiro, como Padre Cícero Romão Batista, o Padim Ciço. Mas o papa, do alto de sua infalibilidade, escolheu Frei Galvão.

Não se descarta a hipótese de uma motivação política. É possível que o novo papa pretendesse aumentar o plantel de santos franciscanos. Há quem diga que poder no Vaticano se divide entre quatro grandes ordens religiosas: dominicanos, jesuítas, franciscanos e beneditinos. Os quadros do primeiro escalão do estado-Igreja são divididos entre as “coligações partidárias” que essas quatro ordens formam com as menores, que apóiam uma ou outra. No caso do Vaticano, o equilíbrio de poder também exige ações de cunho “espiritual” ou popular: santos com mais devotos "contam mais pontos" para as ordens às quais pertenceram.

O Cardeal Joseph Ratzinger, como era conhecido antes de ascender ao papado, era jesuíta, mas escolheu o nome de Bento 16 em homenagem ao fundador da ordem dos beneditinos. Não quis o nome de Ignacio, o de Loyola, que criou sua própria ordem. Deu o recado, com essa ação, de que em seu papado os jesuítas não teriam mais poder que as demais grandes ordens. Isso reforça seu próprio poder. Quer mostrar que não é o papa dos jesuítas, e sim de toda a Igreja. Canonizar um frei franciscano como o primeiro santo genuinamente brasileiro pode dar a entender aos líderes das ordens que o papa pretende distribuir o poder do Vaticano com certa eqüidade. Um santo nascido no Brasil pode contar muitos pontos. Trata-se, afinal, do país com a maior população soi-disant católica do mundo. Parece um bom motivo para o pedido de canonização de Frei Galvão ter passado à frente dos demais santos aqui do Brasil.

Normalmente um processo de canonização é lento, envolve muita investigação. Não pode pairar dúvida sobre a santidade do candidato a santo. Por isso a Igreja instituiu a figura do advogado do diabo. Cabe a este apresentar provas que dificultem a canonização do indivíduo em questão. No caso do Frei Galvão, porém, parece que o Vaticano, em vez de um advogado do diabo, contratou os serviços de um rábula-de-porta-de-cadeia.

O “milagre” que deu fama a Frei Galvão pode ter sido apenas uma conseqüência da ignorância de um caboclo apavorado, que buscava ajuda para sua mulher em trabalho de parto. Mas o rábula do capeta parece ter passado por cima das circunstâncias históricas e culturais que determinavam o contexto social em que o dito milagre teria ocorrido. Nos próximos parágrafos, este blogueiro, no mais nobre intuito de colaborar com a excelência do papado de Sua Santidade, veste sua capa preta até os pés para demonstrar que o milagre do santo não passou de um mal-entendido.

Dá para imaginar o que era a ignorância de um morador de São Paulo no século 18? Não havia internet, nem jornais, nem rádio, nem televisão, nada. Hoje os paulistanos são todos cultos e bem informados, lêem Caras, vêem Adriana Galisteu, Datena, Hebe Camargo, Otávio Mesquita e Big Brother, sem falar nos pastores milagreiros que invadem a televisão madrugada afora. Os paulistanos de hoje – e os brasileiros em geral – estão cobertos pelo manto da sabedoria. Mas naquele tempo não era assim. Grassava nos campos de Piratininga uma sólida ignorância e um profundo analfabetismo semilíngüe. Sim, nem se falava uma língua inteira nessa época, em São Paulo.

Era-se analfabeto, mas não em português e sim na língua geral, uma língua franca que misturava elementos do tupi e do português, com pitadas de guarani e castelhano. Daí a existência de nomes como Tietê, Tatuapé, Cangaíba, Jaraguá, Jaguaré, Anhangabaú e tantos outros topônimos. E não só topônimos. Os caipiras – e eram todos caipiras – comiam pipoca, paçoca de jabá e cambuquira, por exemplo. No português da época essas palavras não existiam. Mas na São Paulo do século 18, a língua portuguesa só existia na frustrada tentativa de comunicação dos padres com os fiéis. A língua oficial da igreja, para uso canônico e ritual, era o latim. O português entrava nas homilias e sermões que ninguém entendia. A comunicação nas casas, nas ruas e nos negócios era feita na língua geral.

Os índios entendiam a língua franca e a utilizavam para conversar com os caipiras portugueses e com os curibocas (mestiços) de São Paulo. Os caipiras e curibocas entendiam a língua franca e a usavam tanto na comunicação com os índios quanto ao conversar com seus pares. Só que os índios também falavam suas próprias línguas. Os portugueses de São Paulo, já não mais.

Geralmente casados com índias, comunicavam-se em seus lares na língua geral. As crianças só conheciam a língua geral e esta disseminou-se rapidamente. A tal ponto que o Marquês de Pombal, a mais colorida eminência parda de Portugal, proibiu o uso da língua geral em São Paulo em 1757, quando Frei Galvão tinha 18 anos.

A proibição demorou muito a pegar. Ainda hoje, se um brasileiro cutucar alguém pode levar um tapa ou um soco. Em Portugal, não se cutuca ninguém. Se houvesse a ação, a palavra seria outra, pois cutucar vem do tupi. A reação poderia ser uma bofetada ou um murro; tapa e soco também são palavras indígenas.

Analfabetos e obrigados a se aproximar da Igreja, detentora de todo o saber e representante do poder, os caipiras paulistas logo perceberam que os ministros religiosos não eram ignorantes. E não eram mesmo. Estudavam nas grandes cidades, como Rio de Janeiro e Salvador, e traziam com eles todo o conhecimento. O próprio Frei Galvão, caipira de Guaratinguetá (nome indígena), estudou nessas grandes cidades. Em latim e português. E esqueceu a longínqua e proibida língua geral dos índios, caipiras e mamelucos.

Os padres liam e escreviam. Na velha vila paulistana, raríssimos eram os que sabiam ler e escrever. Praticamente só os padres. Mais um motivo para serem considerados homens sábios. Tinham até uma língua própria para conversar com deus! Falavam com o todo-poderoso em latim e com os homens em português. Deus eu não sei, mas os paulistanos não entendiam bulhufas do que os padres falavam, acostumados que estavam com a língua geral. Deus talvez tivesse preferido o hebraico, mas não se incomodava com o latim, pois era todo-poderoso.

Pode-se imaginar o desespero que levou um sujeito absolutamente ignorante a vencer o temor e pedir a ajuda do padre, o ser mais sábio que ele conhecia:

– Frei Govão, Frei Govão! A cunhã 'tá de barriga e 'tá gritano! Vai tê um piá, Frei Govão, um curumi, mas 'tá cum dô, Frei Govão!

Curumi? Piá? Cunhã? É provável que o religioso não se tenha dado conta de que a mulher do suplicante, a cunhã, estava parindo. Sim, ela ia ter uma criança, um piá, um curumi. Informação afobada, mal pronunciada, com palavras desconhecidas. Se tivesse entendido tratar-se de um parto, o santo homem não se assustaria, porque já tinha lido isso na Bíblia. Talvez fosse difícil explicar ao roceiro, mas está lá, no primeiro livro, o Gênesis, a praga lançada a Eva na ira divina: “E tu, mulher, parirás com dor!”

Os mais observadores poderão engasgar com a expressão “ira divina”. Afinal, ira é um pecado capital, o que aparentemente compromete a harmonia da expressão. No tempo do Gênesis, contudo, ainda não existiam pecados capitais. Isso é mais moderno, invenção do catolicismo. Mas deixemos isso de lado, por ora. Não faltará oportunidade de se descer o malho nos sete grandes vícios. Voltemos ao pobre sacerdote, que está no sufoco.

Frei Galvão tem de mostrar conhecimento e segurança, dois atributos essenciais para manter a liderança sobre o povinho ignorante da vila. E tem de ajudar um tabaréu assustado, que fala uma estranha língua, mas que nada pede para si e sim para alguém que sofre. Isso comove o franciscano, naturalmente. Ele quer ajudar, mas mal entende qual é o motivo de tanta atribulação do suplicante.

Mesmo não percebendo que se tratava de um parto, compreendeu que tinha algo a ver com barriga e com dor. E então disse ao sujeito o nome do remédio, procurando tranqüilizá-lo:

– Dê-lhe um pouco de bicarbonato de sódio.

Se o problema fosse uma azia ou má digestão, a substância faria bem. Se fosse qualquer outra coisa, mal não faria. Esse negócio de medicamentos não recomendados em caso de suspeita de dengue também é novidade. Mas o caipira não estava familiarizado com a língua portuguesa. Assustado que dava dó, ficou mudo, olhando, com cara de bobo, para o sacerdote.

– Repete comigo – disse Frei Galvão com uma paciência franciscana – Bi-car-bo-na-to. Bi-car-bo-na-to de só-dio.

E o caipira:

– Birca do mato... birca do mato tifódio.

“Melhor escrever”, decidiu Frei Galvão. Procurou um pedaço de papel, mas... Papel? Numa terra de analfabetos? E longe dos centros urbanos de importância? Papel, em São Paulo, não tinha serventia. Para isso que a freguesa pensou usavam-se folhas de plantas, sabugos de milho e outros produtos naturais, descartáveis e biodegradáveis. Não há razão para se assustar com a idéia de usar um sabugo de milho para essa finalidade. O uso era apenas externo, em movimento tangencial.

O que interessa é que papel não havia. Mas Frei Galvão era homem de expediente. Como franciscano, estava acostumado a viver na mais extrema pobreza e a se arranjar com o que tivesse em mãos. Não fosse assim, como teria conseguido construir um convento no pântano que havia onde hoje é o bairro da Luz?

Frei Galvão, inteligente e cuidadosamente, rasga uma fina tira de papel da margem de uma página da bíblia que estava na mesa. Molha sua pena no tinteiro e escreve: bicarbonato de sódio. Abana a tirinha de papel até a tinta secar, dobra-a delicadamente, porque o papel era muito fino, e a entrega ao tabaréu dizendo: “Faz tua mulher tomar isso”.

O religioso imaginava que o sujeito levaria a “receita” à botica para aviar, mas o tipo era mais ignorante do que podia supor o bom frei. Saindo da igreja ainda trêmulo – não só por ter tido a coragem para pedir ajuda ao religioso, que era a expressão do poder, mas também porque levava consigo algo sagrado, rabiscado em um pedaço da bíblia – o coitado correu direto para casa, com o papelzinho firmemente seguro na mão fechada e encostada no peito.

E lá chegando, fez exatamente o que o frei lhe disse: pegou uma cuia com água e fez a mulher tomar aquilo. Teve o cuidado de dobrar mais um pouquinho a tirinha de papel, para que ficasse ainda menorzinha, mais fácil para a cunhã engolir. E ela, no desespero das dores do parto – por desconhecer a bíblia, não esperava que parir doesse tanto –, engoliu o papelzinho, enquanto o caipira recitava, cheio de fé: "Birca do mato, birca do mato tifódio". E a mulher pariu.

Pariu, porque pariria mesmo. Com papelzinho ou sem. Naquele tempo não havia obstetras; quem decidia a hora do parto era o nascituro. Não a mãe nem o papelzinho. Mas o tabaréu ficou encantado com o milagre:

– Frei Govão falô preu repeti uma reza curtinha, “birca do mato, birca do mato, tifódio”, dispois rabiscô uns vobisco tuórum num papezinho de blíbia, dei pra cunhã tomá e ela pariu! O home é um santo!

Daí até as freiras do convento passarem a fazer papeizinhos com orações e os darem para que os fiéis os ingerissem foi um passo. E São Paulo, que não tinha papel nem para remédio, passou a ter papel para remédio. Para outros fins, continuava-se usando folhas secas e sabugos de milho.

Creio que os fiéis não desembrulham os papeizinhos que hoje devem vir encapsulados em material que se degrada no estômago. Mas é pouco provável que esteja escrito, com letras redondinhas e minúsculas de freiras igualmente redondinhas e minúsculas, “Birca do mato, birca do mato, tifódio”, como no milagre original. Provavelmente hoje em dia traz alguma oração curtinha ou um verso em latim tirado de uma ladainha.

O trabalho das freiras – ou terapia ocupacional, se preferem – valeu a canonização do pobre Frei Galvão, cuja alma já não pode descansar em paz. Fosse ainda vivo, certamente estaria dizendo, com sua humildade franciscana:

– Não, não, gente, não é para engolir o papel! É para levar para o boticário aviar! Ite, missa est. Dominus vobiscum, mas não chupem a receita!

Mas talvez tivesse de dizê-lo na língua geral, porque em português ninguém iria entender. Continuam não entendendo e engolindo os papeizinhos.

Atualmente, no Brasil, quase não se fala mais a língua geral. O que se desenvolveu foi uma espécie de religião geral. A mistura de cristianismo, candomblé, astrologia e livros de auto-ajuda é o que impera. O costume de saudar o santo, por exemplo, vem do candomblé. Quando se pronuncia o nome de Obaluaiê, faz-se também a saudação ao orixá: Atotô, Obaluaiê! Com Iansã é a mesma coisa: Epa-rei, Iansã! E com os outros orixás, da mesma forma.

Pois não é que na religião geral dos brasileiros esse costume do candomblé já está pegando entre os devotos de Frei Galvão? Saúdam-no pedindo que olhe por eles, mas usando um termo da gíria do banditismo, “filmar”, que significa observar atentamente, velar, zelar. É, ao mesmo tempo, uma saudação, como no candomblé, e uma súplica, como no catolicismo. Basta ligar a televisão num dia de jogo e observar os cartazes que os fiéis de São Galvão levam para as arquibancadas, com a saudação ao novo santo, o santo brasileiro: “Filma eu, Galvão!”. Êh-êh!

• Celso Paraguaçu •

Foto: Celso Paraguaçu

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