segunda-feira, 11 de fevereiro de 2008

Pela preservação do muar acéfalo


Todo mundo sabe que os vampiros podem morrer de ataque do coração. Basta atacar o coração do bicho com uma estaca de madeira e ele fica lá esticadinho, murchando até virar pó. Câncer de pele também tem um efeito fulminante sobre a dentuça criatura das trevas. Exponha-o à luz do dia – sobretudo nestes tempos de buraco arregaçado na camada de ozônio – e o sanguessuga falece na hora, deixando só a capa no chão. Água corrente também serve. E nem precisa ser a água contaminada que ainda serve a grande parte da população brasileira. Nem essa do garrafão azulado que as pessoas chamam de mineral. Os pálidos seres da noite morrem até com um banho de água tratada. Devem ter aversão ao cloro.


Já os lobisomens morrem quando recebem um tiro com uma bala de prata. Há controvérsias sobre o efeito de uma bala de chumbo banhada a prata, mas a de prata 90, sólida, funciona bem. Não se recomenda comprar balas no camelô para matar lobisomens, pois a maioria delas é falsificada. As balas de prata feitas na China, onde não há lobisomens, não são de prata mesmo. São feitas de uma liga metálica, parece que se chama Zamac, que imita a prata, mas prata não é. É mais ou menos como aquela coisa que tem orelhas de porco, pés de porco, rabo de porco, costelas de porco, mas não é porco, é feijoada.


Como eu sei que na China não tem lobisomens? Ora, no tempo em que era um país comunista, foi proibido ter cachorros. Quer dizer, quase tudo foi proibido, mas a lei anti-cachorro tinha uma boa justificativa. A comida era pouca para se dividir com a cachorrada. Tanto que os cachorros viraram comida. Os lobisomens, no passado, se transformavam em lobos. Mais recentemente, porém, têm virado cachorros mesmo, pois os lobos estão cada vez mais raros. Cachorros grandes, como pastor alemão, akita, etc., mas são cachorros. Se havia algum lobisomem na China, na hora que virou cachorro foi parar numa tigelinha, em pedacinhos fritos no óleo de palma. E foi comido com palitinhos. Assim não há assombração que agüente.


Mas voltemos ao tema deste texto, o muar acéfalo. Quem é que sabe como se mata uma mula-sem-cabeça? Ninguém. A mula-sem-cabeça não tem mais espaço no imaginário brasileiro. Os vampiros não são daqui, nem os lobisomens. Mas deles sabe-se tanto, que até a forma de destruí-los é conhecida. A colonização cultural é a culpada disso. Desde que inventaram o cinema comercial se fazem filmes sobre o Drácula. A mula-sem-cabeça, coitadinha, nem nome tem. E francamente não me parece que alguém iria ao cinema para ver um filme de mula-sem-cabeça. A menos que fosse estrelado pela Juliana Paes. Com a bunda que ela tem, a existência ou não da cabeça seria indiferente. Mas era bem possível que o filme se tornasse conhecido como “A bunda sem cabeça”.


Pois é, freguesa. Ninguém sabe como se mata uma mula-sem-cabeça nem o que ela faz, além de soltar fogo pelas ventas. No caso do muar acéfalo, as ventas não são exatamente as narinas. O bicho não tem a cabeça, mas o pescoço está lá. Ela solta fogo pelo ôco do pescoço, como se fosse o cano de um canhão. As ventas, no caso, são a garganta. E possivelmente as chamas não passam de uma azia das brabas. Ninguém jamais foi queimado pelas chamas muares. De resto, ela fica por ali, perto dos cemitérios construídos atrás das igrejas, pronta para assustar os passantes em noites escuras, com suas labaredas.


Se a freguesa não se incomoda, penso que seria conveniente cavoucar as origens da crendice. Comecemos pela mula. Trata-se do resultado do cruzamento do jumento (Equus asinus macho) com a égua (Equus caballus fêmea). Como os pais são de espécies diferentes, o bicho é híbrido, não procria. Mas gosta de uma boa trepada. Quem conhece a vida na roça sabe que uma mula “viciada” é uma tremenda dor de cabeça para o roceiro. As éguas só aceitam as atenções dos cavalos quando estão no cio. Aliás, quando estão no cio até os jumentos são bem-vindos. E olha que além da inteligência limitada o bicho é baixinho, feio e tem orelhas e outras extremidades enormes. Já as mulas, se virem uma égua se reproduzindo, se encantam com a brincadeira e começam a se oferecer para os cavalos, sem necessidade de cio. E aí se tornam muito chatas. Ficam o tempo todo atrás da cavalada, se oferecendo, mexendo com eles, não os deixam trabalhar em paz.


Os padres de antigamente conheciam bem esses hábitos muares. Quem tinha uma mula viciada precisava se livrar dela, para poder trabalhar com os cavalos. Se a vendesse, o comprador devolveria. Matá-la, porém, era uma maldade. E a munição custava caro. Saía mais barato doar as mulas viciadas para os padres, que poderiam usá-las como meio de transporte. O roceiro se livrava da bicha e ainda fazia uma média com o padre.


Conquanto não tenham sido encontrados registros dessa prática, supõe-se que alguns padrecos fossem bastante afeiçoados a suas mulas. Se hoje há muitos sujeitos apaixonados por seus carros, meras máquinas, duras e sem sentimentos, pode-se imaginar que a afeição fosse muito maior naquele tempo. Ao contrário dos carros de hoje, os animais retribuíam o afeto. A expressão “barranquear a mula” vem dessa época. O sentido era o de encostar a bicha num barranco, no qual o usuário subia para acertar a diferença de altura entre ele e o muar. Entre os leigos, o costume era comum. Ao que parece, as mulas até apreciavam a demonstração de carinho, ainda que fosse incomparavelmente menor que a dos cavalos e jumentos.


Então já temos o padre e a mula viciada. Faltam ainda o bispo e a mulher que desafia a fidelidade do padre ao voto de castidade. O bispo sabia que mulheres assim existiam. Sua eminência era confessor de muitos padres que se diziam atormentados por beatas que os tentavam, seduziam, insistiam, tiravam-lhes a paz, como as mulas viciadas faziam com os cavalos. Sim, o bispo também sabia da existência de mulas viciadas e até de alguns deslizes, por assim dizer, de padrecos com mulinhas mais jeitosas. Bastava um generoso cálice do vinho da missa para ligar uma coisa com outra. O segundo cálice propiciou a invenção da crendice. O terceiro deu sono e Sua Eminência foi dormir. Mas acordou com a idéia pronta. E com dor de cabeça.


Já que a Bíblia não falava em padres, era preciso criar uma história para desencorajar as mulheres que desafiavam a castidade da padralhada. A mulher que estivesse a fim de um padre não tinha cabeça, quer dizer, não tinha inteligência. O reverendo até podia levantar a batina, mas abandoná-la jamais. Não se casaria com a dita-cuja para não perder o emprego. Ela não teria direito algum. Todos os bens que porventura o religioso abocanhasse pertenceriam à Igreja. Só uma mula viciada, sem cabeça, agiria assim. Taí! Mula-sem-cabeça!


Foi só espalhar que as mulheres que davam para os padres se transformariam, depois de mortas, em mulas-sem-cabeça para a história pegar. A coisa do fogo pelas ventas era só um recurso para deixar o bicho um pouco mais terrível. E a crendice parou aí. Não se inventou mais nada sobre a mula-sem-cabeça.


O advento da luz elétrica e a pressão cultural estrangeira fizeram o resto. O mito quase desapareceu. Aliás, a iluminação elétrica deu cabo da maioria das assombrações. No passado, qualquer sombra que se mexesse e qualquer ruído cuja fonte não podia ser identificada cresciam de forma terrível no imaginário popular. Era literalmente o mundo das sombras. Mas a Light fincou postes, esticou fios, acendeu lâmpadas e assustou os abantesmas.


A introdução ficou mais longa do que devia, mas se a freguesa leu até aqui é porque lhe agradou. Agora é que vem a exortação pelo resgate da mula-sem-cabeça. Não se pode deixar desaparecer mais essa manifestação cultural genuinamente brasileira. E não é preciso grande esforço para revivê-la. Se você tem uma irmã, uma tia ou uma sobrinha ainda aproveitável, apresente-a a um padre. Qualquer padre serve, não precisa ser estrela de TV. Basta procurar alguma igreja nas manhãs de domingo que sempre se acha um padre lá. Alguns deles já são bem velhinhos, mas ainda podem servir para esse propósito.


É claro que muitos padres, talvez a maioria, não vão encarar a produção muar, mas é preciso arriscar. Se o padre ao qual se apresentou a dama não demonstrou interesse, apresente-se-lha a outro e mais outro, até que se alcance o propósito. Não há necessidade de ficar dando para o padre indefinidamente, basta uma vez. E a mulificação só ocorre depois da morte, portanto não há prejuízo algum.


Se a freguesa se interessou pela proposta e está avaliando a possibilidade de levar a cabo a empreitada, convém que se apresse. Tem crescido, pelo menos nos Estados Unidos, o interesse dos padres por garotinhos. O Vaticano até separou uma verba para indenizações por ações desse tipo. Na América é assim: comeu tem que pagar. Se a moda pega, como bem lembrou o Rogério Furtado, só haverá burrinhos-sem-cabeça.



• Celso Paraguaçu •