domingo, 27 de julho de 2008

Reservados


Quando a umidade começou a incomodar, Otávio percebeu que já não estava tão assombrado. A decepção fora gigantesca, a ponto de lhe turvar a vista e quase fazê-lo desmaiar. Mas já se estava acostumando com a dor, já sentia o desconforto do muro frio em que se encostara.

Levantou-se e caminhou pelas sombras até o portão, abriu-o silenciosamente e tomou o caminho que, minutos antes, havia percorrido com alegria e preocupação. Era melhor voltar.

Por entre as sombras da noite, ia pensando na intensidade das emoções que explodiram naquele dia. O assalto, a morte, o necrotério, a vida, a alegria, a perturbação do espírito. Não entendia como ainda estava vivo, como o coração agüentara, como as veias não estouraram. Estava vivo.

Melhor que não estivesse. A tristeza de ter ouvido a mulher dizer aquilo só não foi maior do que o efeito causado pela declaração da filha.

— Eu tinha me resignado, mãe — ouviu Dirce dizer. — Se tivesse forças, teria me separado de Otávio há anos. Não foi por causa das crianças não, mãe. É que eu já não tinha mais forças mesmo. Não ia conseguir refazer minha vida... Sim, Otávio era um bom homem. Só isso, um bom homem. Era honesto, trabalhador... Calmo, eu não sei se era. Nunca se alterou em casa, nunca levantou a voz. No máximo, ia dormir sem palavra. Mas ele era triste, mãe. Não tinha alegria. Quase vinte anos de casamento e nunca vi o Otávio rir. Sorriso, só uma vez, na fotografia do casamento, depois nunca mais. Nem antes. Não era brabo, não era sisudo, era triste. Uma tristeza contagiosa. Não, nunca reclamou de nada. Nem de comida ruim. Deus me perdoe, mãe, mas cheguei a fazer sopa sem sal para ver se ele esbravejava, se fazia algum comentário. Nada! Nem mesmo pediu sal para pôr no prato. Tomou a sopa sem sal e não disse palavra. Parecia que nem sentia o gosto. Não sei se tinha alguma dor, nunca falou nada. Talvez tivesse alguma coisa, mas nunca disse um ai. Nunca, nada.

Otávio tinha vindo cuidadosamente observar como estava a situação em casa quando ouviu a voz lamentosa da mulher. Ela não chorava; lamentava-se da vida miserável, não da morte do marido. Ele sabia agora que sua morte tinha sido um alívio para ela. Nunca imaginara que seu jeito reservado causasse tanto desagrado à mulher.

Esperava encontrar a casa cheia de amigos e parentes. Viriam dar os pêsames a Dirce, saber se precisava de alguma coisa, dizer que se precisasse era só falar. Mas não. A mãe dela na cozinha, a mãe dele no quarto, com a menina, e só. Nem o sogro viera. Nem o cunhado. Amigos, não tinha. Talvez alguma vizinha tenha vindo mais cedo, durante o dia. Mas à noite, quando ele chegou, só a mãe dele e a mãe dela.

Ele não sabia que significava tão pouco para Dirce, só tristeza. Julgava-se um bom marido, raramente deixava faltar alguma coisa em casa, e se nunca atendeu um capricho da mulher foi porque ela nunca expressou desejo algum. Sempre foi reservada, como ele. Era o que ele pensava. Mas não era reservada, era triste.

E a menina...

— Sabe, vó — ele ouviu, do lado de fora, a triste voz da filha, enquanto digeria as duras palavras de Dirce, que ainda ecoavam em sua cabeça agora vazia. — Pelo menos agora vou poder usar roupas escuras na escola — dizia a menina. — Acho que quando a gente está de luto pode ir de roupa preta, cinza, não precisa usar uniforme, né? Não posso dizer para a senhora que não gostava dele. Mas também não digo que gostava. Não, eu não vou sentir falta. Tanto faz. Quase nem percebia quando ele estava aqui. Às vezes me fazia um afago na cabeça, mas eu não gostava. Não me lembro de um dia alegre na minha vida, vó, nenhum dia. Tinha natal, aniversário, mas não tinha alegria. Só nós três. Depois veio o Nenê. Acho que é por isso que o Nenê não fala. O pai também não falava, nem a mãe. Na escola eu falo. Se alguém me pergunta alguma coisa eu respondo. Mas não puxo conversa com ninguém não. Agora acho que vão conversar menos comigo, porque estou de luto.

Otávio sentiu as pernas afrouxarem e encostou-se no muro úmido para não cair. E lá ficou, pensando, pensando, até que a umidade começou a incomodar. Agora Otávio iniciava a autocrítica. Não devia mesmo ter sido um bom pai, porque nem mesmo sabe o que significa ser pai. As crianças nasceram, com bom intervalo entre as duas, e só. Ele passou a ser pai delas. Realmente não era dado a carinhos. E nunca precisou repreender a menina, sempre tão reservada. O menino ainda era muito pequeno, só quatro anos.

O que ele sentiu quando ouviu as duas conversas é que tinha se preocupado à toa no caminho entre o necrotério e a casa. Acordara de repente, em cima de uma mesa gelada, e não reconhecera o lugar em que estava. Depois, aos poucos, foi se dando conta da situação. Estava no necrotério. Deviam ter pensado que ele estava morto. Era melhor sair dali antes que chegasse o patologista e lhe cortasse o corpo em busca da causa mortis. Sim, a causa mortis. Morrera de quê? Quer dizer, não estava morto, mas que teria acontecido com ele?

Aos poucos veio-lhe a lembrança de ter encontrado um assaltante dentro da loja, quando abriu a porta pela manhã. O susto foi enorme e ele não se lembrava de mais nada. Teria sido baleado? Apalpou-se, mas não sentiu nada, nenhuma dor nem sinais de sangue na roupa. Só nesse momento percebeu que estava vestido. Será que foi um ataque do coração? Mas estava vivo, e não sentia dor. Será que não haveria autópsia? Iam mandá-lo diretamente para a funerária? Ou será que a funerária preparava os cadáveres no necrotério mesmo? Otávio não sabia. Nunca teve interesse nesse assunto. Aliás, nem nesse nem em nenhum outro. Só sabia que estava vivo.

Saiu do necrotério esgueirando-se, aproveitando a escuridão da noite sem lua, e foi para casa a pé. Andava rente às paredes, temendo encontrar algum conhecido. Precisava dizer a Dirce que estava vivo. Quando ouvia vozes, escondia-se atrás do tronco de uma árvore, de uma banca de jornais, de um carro, até que as pessoas passassem. Temia que o vissem, como se estivesse sendo procurado por assassinos. Enquanto estava escondido, pensava em como avisar a mulher sem lhe causar um susto fatal. Ela não acreditava em espíritos, fantasmas, ele achava. Mas podia morrer com o sobressalto de vê-lo em pé na porta.

Imaginava encontrá-la aos prantos, abraçada com a filha também desfeita em lágrimas, rodeadas ambas pelos parentes, amigos e vizinhos. Deveria haver alguém com quem pudesse falar, em vez de aparecer na porta de repente. O sogro, talvez. Ou o cunhado. Não pareciam ter medo de assombração. Ele poderia explicar que estava vivo, e o parente entraria na casa, irradiando alegria e dizendo: “Gente, o Otávio não morreu! Ele está vivo e vem vindo para casa!”

Seria uma alegria imensa, ele imaginava. Uma alegria como nunca houvera naquela casa. Mas agora, pelas palavras da mulher e da filha, ele se dava conta de que naquela casa jamais houve alegria mesmo. É. A decisão estava certa. Faltava pouco, agora.

Otávio atravessou a rua e entrou às escondidas novamente no necrotério. Ouviu vozes, talvez um pouco alteradas, uma discussão, e achou que o assunto podia ser o seu sumiço. Mas na sala em que estivera, tudo estava calmo e na penumbra. Deitou-se outra vez na mesma mesa fria de antes, cruzou as mãos, fechou os olhos e morreu.

• Celso Paraguaçu •

terça-feira, 8 de julho de 2008

A sucinta e odiosa história da sereiazinha que não sabia nadar



Ela se afogou.

• Celso Paraguaçu •