terça-feira, 3 de novembro de 2009

Chez Miojô



O querido amigo Nivaldo requereu nossa expertise de restauranteur com a seguinte consulta:

“Estou pensando em tirar proveito comercial de meus dotes culinários, mediante a abertura de um bar/restaurante intitulado Miojerie – a Casa do Miojo. Só miojo elaborado nos mais diversos tipos de molhos. Haverá também o serviço de Miojo Delivery. Solicito sugestões.”
Depois de profunda análise do mercado e da personalidade do Nivaldo, nos dispomos a responder a sua consulta.

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Caro Nivaldo
Uma miojerie tem tudo a ver com você, que é francamente francófilo, capaz de recitar em francês as fábulas de La Fontaine, com rima e em alta velocidade. Advirto, contudo, que não acredito no modelo delivery para essa especialidade. É que a massa continua sob cozimento no trajeto até a casa do freguês, perdendo o ponto al dente cariado. E você não vai querer comprometer o prato, oferecendo a massa fora do ponto.

O estabelecimento precisa ter mesas, nas quais as pessoas possam saborear as iguarias. Mas nada de fast food. Resista à tentação de fazer um “Miojo in the Box” ou um “MacArroni’s”. Sua proposta se encaixa com perfeição num local elegante, para o público adulto recém-chegado ao extrato consumidor da sociedade.

Seria muito adequado um ambiente parisiense antigo, um típico bistrô anterior à Segunda Guerra, antes da contaminação cultural americana. O nome pode ser Chez Miojo, La Cave du Miojo ou algo em francês que remeta à especialidade culinária da casa. Chez Nini ou La Petite Casserole, por exemplo, soam bem, mas não dizem qual é a comida. A menos que seja Chez Nini Miojerie. Pode ser.

Com a música, porém, você terá dificuldade. O ambiente sugere música ao vivo, mas a moderna música francesa soa como americana ou berbere. Tais sons são incompatíveis com a finesse do ambiente. No entanto a música francesa mais antiga não pode mais ser tocada. Não por faltarem bons músicos, mas sim porque não se fabrica mais aquela cansativa sanfoninha deles. O que há de mais parecido é a concertina, a sanfona de oito baixos que ainda se toca no Nordeste. Mas essa serve. Aliás, parece mesmo ser muito adequada à nouvelle cuisine du miojô. Em vez de la balade ou la valse, teremos baião, coco e arrasta-pé, ou le bayon, le coco, le traine-pied.
Naturalmente, você fará os mais deliciosos pratos franceses adaptados ao gosto e ao poder aquisitivo do consumidor brasileiro. Assim, os cariocas poderão degustar seu excelente miojo au haricot noir, em vez do macarrão com feijão-preto que costumam comer em casa.

O restaurante terá nome e aspecto francês, mas a cozinha será internacional e inovadora, bem ao seu estilo. Outra sugestão de prato é o miojo com molho madeira. O molho é de preparo simples, bastando juntar numa casserole um pouco de água, uns cubos de caldo Kitano (mais barato que os demais) e vinho Chapinha de mesa tinto seco, que também será servido na refeição. Para dar o sabor amadeirado, colocam-se no molho algumas lascas de eucalipto, que são retiradas antes de servir. No lugar de champignons, sugiro uns toletes de macaxeira, para promover a aculturação culinária.

Pratos tradicionais de outras cozinhas européias não podem ser esquecidos. E, naturalmente, com o sabor exclusivo da cozinha brasileira. Assim o miojo al aglio e olio será feito com minúsculos dentinhos de alho chinês, muito pequenos para tirar a película. São fritos com película e tudo, no óleo de soja, cujo aroma é inigualável.

Da culinária alemã você trará as saucisses, para um delicioso molho feito à base de salsicha de metro (aquela pintada de vermelho, que em alguns mercados é vendida por quilo, como salsicha a granel) e massa de tomate Arisco. Conhecido como macarrão com “salchicha”, o prato tem grande aceitação junto ao público brasileiro. E certamente ganhará um novo relevo com seu modo de preparar e um nome francês. Talvez chamar as saucisses de sauchiches seja uma boa ideia: miojo avec des sauchiches.

O ponto, ou seja, o local onde instalar a miojerie, é de extrema importância. Os bistrôs parisienses que o cinema gravou em nossa memória ficavam às margens do Sena ou perto do Bois de Boulogne. Não temos um rio tão bonito, nem um bosque parecido, mas você pode montar um simpático bistrozinho à beira do Tamanduateí ou com vista para a Fazenda do Carmo, na Zona Leste. Seria o sonho de incontáveis consumidores recém-chegados ao mercado.

Vejo as mães que vêm buscar seus filhos na escola municipal aqui perto de casa. Enfiam um pacote de “salgadinho” nas mãos das crianças, para irem enchendo o bucho, porque a janta vai demorar para sair. Se houvesse uma miojerie na beira do corguinho da rua de baixo, certamente elas prefeririam oferecer aos petizes um nutritivo miojô avec des sauchiches em vez de entupi-los com essa coisa de isopor com cheiro de chulé.

E nos fins de semana? Esses consumidores não têm aonde ir. Não se sentem à vontade nos shopping centers. Mas lá por perto, tudo bem. Pois ao lado do Shopping SP Market existe um córrego com barrancos cobertos de capim. É o ponto ideal para instalar um trailer da Chez Nivaldo Miojerie. Existem outros trailers, mas são meros botecos; nenhum tem a elegância, a finesse, de uma miojerie.

Em termos comerciais, o ponto c’est ci bon, pois fica em frente à gare Jurubatuba, da CPTM. Em frente à gare, ao lado do shopping center, com vista para o córrego e, o que é melhor, muito próximo do local em que o padre Marcelo faz seu espetáculo religioso aos domingos. Já pensou que fome têm às dez da manhã aquela montanha de fiéis? São milhares deles, ungidos com a água benta lançada com uma brocha, cansados de ficar em pé desde as quatro da manhã e alimentados apenas com um pedacinho do corpo de Cristo. Para o espírito, o alimento pode ser suficiente, mas o corpo pede um miojo avec aile de poule en fricot. O ensopado de asa de galinha dá um molho culturalmente bem aceito no Brasil e remete aos anjos, que são bípedes alados, como os frangos. Os fregueses do padre Marcelo certamente se tornarão seus fregueses também.

Mais ainda. Depois das dez da manhã, quando os bizantinos fiéis do Padre Marcelo vão para casa, chegam os frequentadores da feira-livre montada dois quarteirões acima. Sabendo da existência da miojerie, provavelmente abrirão mão do pastel de ração canina que comem atualmente antes de ir embora. Ninguém em sã consciência trocaria a cozinha internacional com inspiração francesa pela culinária popular chinesa.

Você não pode esperar que o corguinho tenha um aroma agradável. O cheiro é forte e ruim, mas ajuda a compor o clima da miojerie. Remete ao odor da Paris de duzentos anos atrás. E você vai concordar que não há muita diferença entre o cheiro de esgoto do corguinho e o aroma do miojo.

Estou certo de que a miojerie será um sucesso, mas uma questão ainda me preocupa. É que se os chineses inventaram o macarrão, os japoneses inventaram o miojo, que é um spaghetini pixaim. O problema é que no Brasil o pixaim está em baixa. Talvez seja preciso você aplicar a famosa chapinha no miojo antes de preparar os pratos. Vai ficar com aspecto de macarrão espichado, como fica o cabelo das moças, mas elas acharão que está lindo.

Naturalmente essa preocupação estética se refere exclusivamente ao público feminino. Homem come de qualquer jeito, seja liso, pixaim ou com “escova progressiva”. Se a moça tiver uma boa culinária é o que basta.

• PGC •

sexta-feira, 22 de maio de 2009

Um elefante, dois bêbados e uma carreira que foi para o espaço


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– Eu vi o olifante.
Serginho girou tão depressa no banquinho do balcão que quase caiu. A mão firme do dono do bar segurou-o pelo ombro. O homem girou-o de volta e disse:
– Não dá bola não. Esse aí vê de tudo. – disse o botequineiro com um leve sotaque de Trás-os-Montes.
Serginho queria ouvir o que o sujeito tinha a dizer, mas o homem do balcão explicou, enquanto passava o pano úmido sobre o mármore:
– Esse aí é o Ativo Fixo. O pessoal dos escritórios que vem tomar uma no fim da tarde deu esse apelido. Eles dizem que ele faz parte do equipamento do bar. Alguns conversam com ele, brincam, pagam uma pinga e fica por isso mesmo. Ele faz qualquer coisa para começar uma conversa e pedir ao outro que lhe pague uma dose para molhar as palavras.
Como Serginho ainda parecesse disposto a ouvir o etilista, o dono do bar empunhou sua autoridade de proprietário e levantou a voz em direção ao bebum da casa:
– Vai dormir, ó Ativo, e deixa o freguês em paz. Volta mais tarde, quando o pessoal dos escritórios chegar.
O bêbado levantou-se lentamente, resmungando, e sumiu de vista.
– Onde ele dorme? – perguntou Serginho.
– Agora não sei. De noite é por aí. Costuma aparecer depois do almoço e vai ficando até a hora de fechar. Às vezes me pede para dormir aqui dentro, mas não deixo. Isto não é albergue de bêbado. Acho que ele dorme no albergue da prefeitura. Tem um perto do Largo 13, deve ser lá. Quando comprei o bar ele já fazia parte da paisagem, vinha todas as tardes. Nos primeiros dias, tentei afastá-lo, mas depois percebi que os fregueses da noitinha gostam dele, fazem piadas, brincadeiras. Se divertem, ele e o pessoal. E é bom para o negócio.
– Ninguém faz maldades com ele?
– Não! São só brincadeiras, piadas, coisas que as pessoas que trabalham em escritório precisam fazer para aliviar a tensão. Eu tenho um acordo com o Ativo, que ele nunca descumpriu: pode frequentar a casa, mas não pode falar palavrões nem fazer gracejos para as mulheres que entram no bar ou passam na calçada. Não está no acordo, mas também não gosto que ele venha conversar com fregueses novos.
– É, deu para notar.
– Tem gente que pode até se assustar.
– Ele não parece assustador.
– É, mas sabe como é... Tem gente que não gosta.
– Bem, vou andando.
– Não quer tomar mais uma cervejinha?
– Não, preciso ir mesmo.
– Volte sempre, a casa é sua. E olha, se tivesse visto o elefante, eu falava. Mas não vi mesmo.
• • • • •
Serginho não dormira bem. Sonhava com o elefante, com o chefe, com os colegas rindo dele, com o eventual bilhete azul. Na hora que a coisa aconteceu, foi até divertido. Mas quando teve de explicar na empresa o motivo do atraso, o mundo veio abaixo.
O engenheiro Ricardo, o chefe, estava esperando por ele na porta. Dizia que o cliente já tinha ligado duas vezes para saber das condições do instrumento que mandara consertar e Sérgio ainda não tinha chegado na empresa com o aparelho pifado. O tempo de demora seria suficiente para os técnicos saberem o que havia de errado com o equipamento; talvez até para consertar.
Enquanto Serginho abria o porta-malas para pegar o aparelho do cliente, o chefe continuava expondo o motivo de sua irritação:
– O cara nem pediu o orçamento, só quer saber se dá para a gente consertar ainda hoje. E nós ainda nem vimos a cara do equipamento! E esse é o único no Brasil. Não tem como emprestar outro para o cara ir trabalhando enquanto consertamos esse. É único. Vem da Rússia, leva mais de um ano para se conseguir importar um troço desses. Que aconteceu para você demorar tanto?
– É que tinha um elefante na Av. Santo Amaro e o trânsito...
– Elefante? Na Santo Amaro?
O espanto de Ricardo fez com que falasse tão alto que até os técnicos das bancadas levantaram os olhos para ver o que acontecia. Sem falar dos caras da aferição, da Dona Ondina, secretária, do cara da contabilidade, da recepcionista. Até dona Neusa, que fazia café e faxina, olhou assustada. Um elefante na Santo Amaro deixa todo mundo curioso.
• • • • •
Serginho também ficara curioso quando viu o bicho, da mesma forma que os outros motoristas. O trânsito parou, lá pelas duas da tarde, horário em que dificilmente havia congestionamento naquele tempo. Serginho tentou ver alguma coisa, mas só enxergava uma aglomeração a alguma distância.
Devia ser uma batida, o que se resolvia facilmente, a menos que houvesse agressão física. Aí viria a polícia, com poder para baixar o cacete em ambas as partes. E até de levar os motoristas para a delegacia, deixando os carros batidos atrapalhando o trânsito. Não havia nada que Serginho pudesse fazer. Era esperar e relaxar, ouvindo Led Zeppelin no toca-fitas. Naquele tempo, 1985, ouvir Led Zeppelin no toca-fitas era a melhor coisa que se podia fazer. Hoje há coisas muito melhores, como ouvir Led Zeppelin num tocador de MP3.
Serginho observou que muitos motoristas começavam a sair dos carros, olhando para os lados da aglomeração. Ele também saiu e então viu o elefante. Cinza, enorme, cheio de rugas e de barro, parado ali na Avenida Santo Amaro, na contramão, balançando a tromba como se regesse uma valsa.
As pessoas se admiravam, apontavam, conversavam baixinho com medo de atrair a atenção do bicho, mas o animal não dava a mínima. Ao seu lado, uma espécie de domador tentava fustigá-lo com um ridículo chicotinho que nem fazia cócegas no paquiderme. As chicotadas indolentes denotavam uma ação meramente formal. Esperava-se que ele tivesse o bicho sob seu comando e era isso que, sem convicção, ele tentava demonstrar.
Mas só o que ele demonstrava era o resultado do consumo excessivo de álcool. Para não cair, o domador encostava-se na perna do elefante e parecia se abanar com o chicotinho, ao açoitar impotentemente a barriga do trombudo. Vestia calças – o domador, não o elefante – que um dia foram brancas ou beges, botas surradas e sujas, um colete estampado diretamente sobre as costas sem camisa, e um lenço na cabeça. Serginho achou que era um traje cigano. Talvez fosse uma variação artística, para fugir da roupa tradicional dos domadores de circo, que imitava os uniformes safári dos caçadores brancos dos filmes da década de 1940.
Os motoristas, com os motores desligados já havia algum tempo, deleitavam-se com a inesperada presença. Um taxista exibia seu conhecimento do mundo animal com frases do tipo “os elefantes têm a melhor memória dentre os mamíferos: nunca esquecem” ou “para matar um elefante é preciso atirar em seus olhos, pois não existe bala capaz de perfurar seu couro”. A maioria discutia o peso do bicho. Na média das opiniões, passaria de duas toneladas, talvez até mesmo de três. Serginho olhava de longe, ouvia os comentários, mas não falava nada. Só pensava na força que um animal daquele tamanho devia ter.
E o elefante, como se ouvisse os pensamentos de Serginho – capacidade até o momento não confirmada pela Ciência –, exibiu seu potencial destrutivo. Fez um quarto de volta, no sentido horário, para quem olhasse de cima, e encostou a enorme bunda num Passat estacionado. Foi praticamente um esbarrão, mas causou substancial dano à lataria do carro. Aí o espetáculo mudou de figura. Com a burguesia é assim: vai tudo bem, desde que não mexam no patrimônio. E o bicho amassou um carro, justamente o mais significativo símbolo do status burguês. Tornou-se imediatamente inimigo de todos os proprietários de carros que viam a cena.
Um deles tomou o chicotinho da mão do domador e começou a bater na cara do elefante, como quem repreende um cachorro que mastigou um chinelo. Os demais dividiram-se em três grupos. Uns corriam para seus carros, outros corriam para longe do elefante e o terceiro grupo corria em direção do bicho, agitando os braços para afugentá-lo. A estratégia do último grupo funcionou. O elefante completou a meia volta que havia começado, alinhou-se no sentido correto do trânsito e foi-se embora. Ainda tentou entrar num bar, para se esconder da turba, mas as pessoas que tinham se abrigado no boteco perceberam que o bicho tinha medo de gente e o enxotaram sem dificuldade, apenas gesticulando e gritando. O elefante seguiu seu caminho em direção ao Largo 13 e sumiu de vista. Sem elefante, as coisas foram voltando ao normal.
O trânsito começou a fluir. Serginho entrou no carro, virou a fita do Led Zeppelin que tinha acabado, e rumou para a empresa. Estava feliz, nem tinha percebido quanto tempo ficara entretido com o elefante. Foi a primeira vez que o trânsito atravancado não o deixou irritado. Por isso assustou-se com a irritação do chefe, que esperava por ele na portaria. “Faz mais de uma hora que estou esperando você chegar”, disse Ricardo, zangado. Serginho olhou para o relógio, constatando um atraso de quase duas horas.
Tinha de haver uma boa explicação para a demora. A presença de um elefante na avenida Santo Amaro, porém, não se enquadrava nessa categoria. Era verdade, mas... O chefe olhou sério para Serginho e saiu empurrando o carrinho com o equipamento que tinha de ser consertado. Não tinha tempo para conversar agora. Nem perguntou a Serginho qual era o defeito reclamado pelo cliente.
Serginho fechou o carro e foi para junto dos colegas, que queriam saber que conversa era aquela de elefante na Santo Amaro. Serginho, preocupado com a atitude do chefe, explicou por alto. E se arrependeu imediatamente. A moçada riu, fez gracinhas, e ninguém acreditou. Até que o Guinão, um sujeito sério que Serginho respeitava, falou:
– Meu, você podia dizer que furou um pneu, que o motor morreu e precisou esperar que esfriasse para ligar de novo, ou podia inventar alguma coisa heróica, como socorrer um velhinho que caiu na calçada, levar uma mulher grávida para a maternidade... Tinha de inventar uma porra-louquice dessas? Vá ver a namorada durante o expediente, vá almoçar com ela, mas não invente desculpas malucas não, cara. Isso pode prejudicar sua carreira.
– Mas eu não inventei, Guinão! Tinha um elefante mesmo!
– Ah, Serginho...
Até aquele momento Serginho temia que algo pudesse prejudicar sua carreira. Gostava do trabalho e ia gostar ainda mais quando se tornasse um técnico. Ele tinha até uma promessa de Ricardo. Ficaria alguns meses no atendimento, retirando e entregando os equipamentos dos clientes, e depois aprenderia a consertar e aferir os instrumentos de precisão. Ter a carreira prejudicada pelo elefante não era nada bom. Foi quando chegou o cara da contabilidade com a má notícia:
– Gancho, Sérgio. O Dr. Ricardo falou para você ficar em casa nos próximos três dias, enquanto ele vai pensar no que vai fazer com você.
A má notícia foi concluída com um gesto inusitado do cara da contabilidade, que saiu com a dobra do braço direito encostada no nariz enquanto balançava o antebraço como se fosse uma tromba. Para completar, um dos colegas imitava o bramido de um elefante.
Serginho ficou tão emputecido com os colegas e com a decisão do chefe, que resolveu ir embora imediatamente. Foi para o vestiário para tirar o macacão de serviço e sua raiva aumentou. Alguém tinha pendurado na porta de seu armário um cabide com um guarda-pó cinza dobrado e grampeado para ficar com a forma da cara de um elefante. Uma das mangas ficava escondida e a outra bem no centro do origami, como se fosse uma tromba. Bonito trabalho, completado com olhos desenhados a giz. Mas Serginho não gostou. Atirou longe o cabide, trocou de roupa, pegou tudo que tinha no armário e largou a porta aberta, como se nunca mais fosse voltar à empresa.
Naquele momento, era isso mesmo que pretendia. Nunca mais queria ver a cara daquelas pessoas que não acreditavam que ele tinha visto o elefante. Ora, quem nunca viu um elefante numa avenida? ...
Tinha de admitir que não era uma cena muito comum. Se fosse um elefante acompanhado de um palhaço, um malabarista, um sujeito num monociclo, tudo junto, ainda vai. Seria uma parada de circo, anunciando o espetáculo daquela noite. Mas um elefante sozinho... Sozinho, não. Tinha um domador cigano com ele. Bêbado. Talvez nem fosse domador. Nem cigano. Era apenas um bêbado fantasiado de cigano ao lado de um elefante. Na avenida Santo Amaro. Não era mesmo muito fácil de acreditar. Nem para quem viu.
E Serginho, no ônibus de volta para casa, começava a duvidar de ter presenciado a inusitada cena. Pensava na feijoada que havia comido no almoço. Não era uma grande feijoada, mas feijoada é como sexo: mesmo quando é ruim é bom. Talvez não devesse ter tomado a segunda caipirinha de barriga vazia, antes do rango.
Mas estava boa e era de graça, fazia parte da feijoada, ele tinha de aproveitar. Não, não podia ser a caipirinha. Serginho se entendia bem com as bebidas fortes. Uma caipirinha não fazia mal para ninguém. Duas também não, já que duas vezes zero é zero. Talvez fosse alguma coisa no tempero da feijoada.
Serginho tinha ouvido falar de bolo de maconha, docinhos com sementes de papoula, chá de lírio, cogumelo com leite condensado e outras especialidades da culinária bicho-grilo. Mas sempre achou que feijoada fosse uma comida careta, que precisava da caipirinha antes para dar algum barato. Talvez estivesse enganado. Pode ser que aquela couve refogada contivesse outras ervas. Ou o feijão tenha sido cozido com raízes baratinantes. Até mesmo uns pedaços de cogumelos passariam despercebidos, em meio a tantas extremidades suínas que vinham no feijão – focinho, rabo, orelhas, pés.
Tinha de ser isso. Foi alguma coisa que ele comeu. Podia até ser algum inseto alucinógeno que se suicidara no caldeirão. Um elefante na avenida Santo Amaro era difícil de acreditar, mesmo para quem tinha visto. Ou pensava ter visto. E a dúvida foi crescendo e tomando conta dos pensamentos de Serginho, que por fim tomou a decisão: no dia seguinte voltaria ao local onde pretensamente se dera o fato e o confirmaria ou não. Se houvesse testemunhas, poderia obter um depoimento favorável. Talvez até evitar o bilhete azul. Não, já não queria evitar o bilhete azul. A empresa que fosse para o inferno. Ele só precisava saber para si próprio se vira ou não o elefante.
Maldormido, levantou-se mais cedo que de costume e se apressou a caminho do ponto de ônibus. Não seria a mesma linha de costume, mas sim a Via Dolorosa que o levaria, de condução em condução, até a avenida Santo Amaro, à altura do acontecimento da véspera. O movimento era forte quando chegou. E foi direto ao jornaleiro:
– Bom dia.
– Bom dia.
– O senhor viu um elefante aqui ontem à tarde?
– Não vi não.
– Mas não tinha um elefante ali perto da esquina, que atrapalhou todo o trânsito?
– Olha, moço, o trânsito por aqui fica sempre atrapalhado. Tem muito ônibus, caminhão de gás, caminhão de leite, de cigarro, de cerveja, os tanques que abastecem os postos de gasolina...
– Mas ontem à tarde tinha um elefante ali, não tinha?
– Se você está dizendo...
– Não; estou perguntando. Tinha ou não tinha?
– Não sei, meu! Eu fico o dia todo enterrado nessa porra dessa banca, vejo o mundo todo pelas páginas dos jornais e das revistas, mas não vejo um elefante, se aparecer um ali na esquina, entendeu? Eu não estou aqui para tomar conta do trânsito nem das esquinas. Se você perdeu a merda do seu elefante, pode estar certo de que não está na minha banca, tá? Vá procurar em outro lugar! Dá licença, que tenho mais o que fazer.
A irritação do jornaleiro causou espanto em Serginho. Mas ele próprio estava irritado; talvez tivesse mostrado seu estado de espírito na conversa. Era melhor pegar leve, chegar mais maneiro nas pessoas. E foi assim que se aproximou da mocinha que estava distribuindo panfletos de um nightclub recém-inaugurado nas proximidades. Serginho era bom de conversa com as garotas.
– Oi.
– Oi – disse ela, com um sorriso inesperado. Quem esperaria um sorriso de uma distribuidora de panfletos, sob um sol de rachar, com o barulho infernal do trânsito? Mas ela sorriu. E ele também.
– Você estava aqui ontem? – perguntou Serginho.
– Estava. Desde segunda-feira. Dá licença.
Os carros pararam no sinal vermelho e ela foi distribuir os panfletos, com sorrisos para todos os motoristas. Alguns sorriam também, outros falavam alguma coisa que a fazia sorrir mais e dizer algumas palavras, mas Serginho não podia ouvir da calçada. O sinal abriu e ela voltou à conversa:
– Então, desde segunda-feira. A casa inaugurou na sexta e a gente vem fazer a promoção aqui.
Serginho pegou um dos folhetos, deu uma olhada rápida. Algumas fotos mal impressas de garotas de biquínis, uma de topless, e o convite para “uma noite alucinante de puro prazer, com o primeiro drinque grátis”.
– Legal. Você trabalha lá?
– É. Por enquanto eu sou garçonete, mas estou fazendo curso de dança, dublagem e striptease. Eu danço bem e tenho um corpinho legal, você não acha? Dá licença.
Mais uma vez os carros param no sinal fechado e a moça vai distribuir panfletos e sorrisos. Um dos motoristas pediu que ela autografasse o panfleto ou qualquer coisa assim, porque ela escreveu alguma coisa no papel impresso. O sinal abriu, o motorista de trás buzinou, e ela correu de volta para a calçada.
– Deve ser irritante esse serviço, não? – Perguntou Serginho.
– De garçonete?
– Não; a panfletagem – explicou ele, apontando para o maço de volantes na mão da garota.
– Eu nem sabia que tinha esse nome. Mas é legal. Tem uns caras meio grossos, mas a maioria me trata bem. Dizem que eu sou bonita, que sou gostosa, aquele ali até me pediu o telefone, você não viu?
– Vi.
– Escrevi meu nome dentro de um coração e desenhei uma flecha apontando para o número do telefone que está impresso no volante.
– Tem muito disso?
– Pedir telefone, não. Está impresso, né? Tem umas passadas de mão, tem caras que me pedem um beijinho, essas coisas.
– E você dá?
– Beijinho? Dou, sim, mas só no rosto.
De repente ela ficou nervosa e falou depressa, olhando para os lados:
– Você é repórter? ’Tá gravando, ’tá filmando? Eu sou “de maior”, ’tá?
– Não, não. Fique tranquila. Só estou conversando.
– Ah, tá. É que é difícil conversar assim. Dá licença.
Outra vez o sinal vermelho, os motoristas, os sorrisos, gracejos, grosserias, o de sempre. E o sinal verde.
– Então; é difícil conversar neste abre-fecha de farol. A gente podia se encontrar mais tarde... para conversar, beber alguma coisa...
– Não, eu só queria saber se você viu o elefante ontem.
– Ah, meu. Essa é muito velha. Você enfia as mãos nos bolsos, tira os forros para fora e fala para eu pegar na tromba, não é isso. É uma bobeira, muito sem graça.
– Não, é sério. Ontem à tarde tinha um elefante aqui na avenida, você não viu?
– Ontem à tarde? Ontem foi quarta-feira, dia de ensaio de striptease. Ontem eu só fiz promoção até uma da tarde. Depois fui almoçar e fui para o ensaio. Estou ensaiando um strip com “Stairway to heaven”, conhece?
– A música? Conheço. É do Led Zeppelin. Até toco a introdução no violão.
– Essa eu não dublo porque é voz de homem, só danço e tiro a roupa. Mas é difícil, porque é muito comprida e eu não tenho tanta roupa assim para tirar. Acabo dançando pelada mais de metade da música. Se você quiser posso fazer um strip só para você, com você tocando no violão...
– É. Bem, depois a gente vê isso. Agora preciso achar alguém que tenha visto o elefante. Tchau.
Aproveitando o sinal fechado, Serginho atravessou a avenida. Deu uma olhada para a putinha, que estava no meio dos carros. Ela estava olhando para ele e girando o indicador em torno da orelha. Não entendeu se estava chamando-o de biruta ou se gesticulava para que ele ligasse para ela. No tempo dos telefones de disco, ambos os sinais se confundiam. Mas ela apontou para o panfleto, no qual havia o número do telefone do nightclub. Ele entendeu que era para ligar e fez com a mão um sinal de positivo, apesar de nem saber o nome dela.
Talvez apontar para o panfleto fosse apenas uma desculpa. Ela achava que ele não era muito certo das idéias, mas como ele a viu girando o dedo, ela mostrou o papel, explorando a ambiguidade do gesto. Mais uma olhadinha. Ela estava de costas agora e, mesmo à distância, via-se que tinha um corpinho atraente. Mas não sabia nada do elefante, então não tinha utilidade no momento. O engenheiro Ricardo teria gostado de ouvir isso, pois vivia dizendo para Serginho manter o foco no que tem importância. “Foco, garoto, foco”, dizia com frequência.
O manobrista do salão de beleza foi o próximo entrevistado. O sujeito não estava muito a fim de conversa. Ficava olhando o trânsito. Cada vez que um carro diminuía a velocidade, ele se curvava para tentar ver o motorista. Se fosse uma mulher, ele assumia uma postura de alerta, pronto para correr até o carro, abrir a porta para a freguesa e assumir o volante para estacionar. Não queria se distrair com conversa mole:
– Olha, meu, se o elefante fosse guiado por uma mulher e parasse aqui na frente, eu ia lá e estacionava o bicho. Mas se não parou aqui na frente, eu não vi.
– Mas ele estava ali na esquina.
– Desculpa, cara, eu não vi nada.
– Mas os carros ficaram parados um tempão.
– É, isso é irritante. Às vezes fica engarrafado muito tempo. Mas não adianta a gente querer descobrir o motivo. Deve ser carro demais.
– Não. Ontem era um elefante.
– Ou podia ser um acidente, um caminhão parado, um ônibus quebrado, um atropelamento lá no Pegue-pague. Podia ser qualquer coisa.
– Mas foi um elefante.
– Pode ser. Eu não vi.
Serginho percebeu que não adiantava argumentar. O manobrista só olhava os carros que passavam do lado da avenida onde ficava o salão de beleza. O que ocorresse no outro lado da avenida ou na frente dos imóveis vizinhos não chamava sua atenção, nem que fosse um elefante ao lado de um bebum fantasiado de cigano.
Desacorçoado, Serginho sentou-se num dos poucos bancos da imitação de praça que havia entre a Rua da Paz e a Américo Brasiliense e mergulhou em pensamentos. Se estivesse “bom de grana”, compraria um jornal para tentar se distrair. Quem sabe se parando de pensar no elefante não lhe viria uma boa idéia para encontrar uma testemunha. Talvez estivesse fechando demais o foco no local. De onde o elefante poderia ter vindo? Se descobrisse, iria até lá e perguntaria ao domador alcoólico.
Serginho varreu de memória todos os terrenos em que se armavam circos nas redondezas, mas não havia circo nenhum. Só se não fosse um circo. Talvez o domador fosse um cigano de verdade, daqueles que acampavam perto da ponte do Socorro, ou da João Dias. Talvez o elefante fosse do cigano, do acampamento. Tinha de confirmar isso.
Gastou três passagens de ônibus: uma até a ponte João Dias, outra de volta ao Largo 13 e mais uma até a ponte do Socorro. Nada. Nem sinal dos ciganos. Não havia acampamento, nem sinal de que tivesse havido algum recentemente. O mato estava alto, sem marcas de fogueiras. Serginho enfureceu-se consigo mesmo: “Para que os ciganos iam querer um elefante? Ciganos andam de carro, de caminhão. Vão arrumar um elefante para ter de ficar levando o bicho para cima e para baixo de carona? A troco de quê? Eles não são burros, eu é que sou! Gastei três passagens à toa.”
Estava quase desistindo, pensando voltar para casa, quando se lembrou que o elefante havia tentado entrar num bar. As pessoas que estavam lá o assustaram. O dono do bar devia ter visto alguma coisa.
Mais um ônibus para voltar à avenida Santo Amaro, eufórico com a possibilidade de finalmente encontrar uma testemunha. Desceu num ponto próximo e apressou o passo em direção ao boteco, mas não entrou. Era hora do almoço e o estabelecimento estava cheio. Temia fazer a pergunta sinistra e despertar o riso malvado da freguesia. Tinha de falar com o dono do bar, mas de um modo mais privado. Esperaria até que o movimento caísse.
A angústia da espera é muito pior quando se tem fome. A grana curta, porém, pedia moderação. Não queria gastar seu minguado dinheirinho almoçando em outro bar, porque teria de fazer uma despesa para conquistar a boa vontade do homem do balcão. Tinha de esperar com fome.
Depois que o movimento do almoço terminasse, provavelmente o dono do bar estaria ocupado durante algum tempo, botando ordem na bagunça, e não estaria disposto a manter uma conversa leve sobre elefantes. A melhor estratégia era chegar depois das duas ou duas e meia da tarde. Tinha de esperar a hora certa. E esperou.
Olhava para o relógio a intervalos de menos de cinco minutos, mas não entrou no bar até as duas e meia. Quando pisou na soleira, achou que devia dar mais um tempinho. Mais uma hora, talvez. Mas já estava lá, portanto ia ser agora mesmo. Decisão. Foco e decisão. Ah, sim! O engenheiro Ricardo teria se orgulhado dele. Aquele filho da puta do engenheiro Ricardo, que ia demiti-lo por ter visto um elefante.
Sentou-se, pediu uma coxinha e meia cerveja.
– Tem um molhinho de pimenta?
– Mas é claro! – respondeu alegremente o homem, colocando o vidrinho na frente de Sérgio.
Ótimo, o homem estava bem humorado. O movimento do almoço devia ter sido bom. Serginho optou pela abordagem indireta:
– É verdade que tinha um elefante aí na avenida ontem?
– Ah, é?
– O senhor não viu?
– Não...
– Mas me disseram que ele quase entrou aqui no bar.
– Entra muita gente aqui no bar, graças a Deus – disse o homem, fazendo o sinal da cruz.
– Mas elefante não, né?
– É, elefante eu nunca vi – confirmou, rindo.
Foi nesse momento que Ativo Fixo interveio:
– Eu vi o olifante.
Como o dono do bar tivesse espantado a única testemunha do acontecimento, Serginho engoliu o restante da coxinha, secou o copo de cerveja, pagou e saiu. Precisava encontrar Ativo Fixo.
Alcançou-o com facilidade e o convidou para conversar um pouco num outro bar, um pouco mais adiante. Sentaram-se numa mesinha e Serginho pediu:
– Vê uma loira gelada aí para a gente.
– E um quebra-gelo – completou Ativo Fixo.
O botequineiro colocou dois copinhos de cachaça sobre a mesa.
– O quebra-gelo era só um – disse Serginho olhando para o garçom.
– Não, não – disse Ativo – pode deixar os dois.
Antes que o sujeito voltasse com a cerveja, Ativo Fixo já havia entornado os dois martelinhos de pinga. Quando a loira gelada chegou, Serginho fez questão de servir ele mesmo. Enquanto colocava o precioso líquido no copo de Ativo, perguntou:
– Então, seu Ativo, o senhor viu o elefante ontem?
– É. O olifante. Eu vi.
– Grandão o bicho, né?
– Grande, muito grande. Um rabo muito grande.
Serginho sorriu, imaginando que o bêbado devia achar que a tromba do elefante fosse o rabo do bicho. Conhecia uma piada assim, sobre uma velhinha que telefonou para o delegado dizendo que tinha um porco enorme com dois rabos na horta dela. Era elefante que tinha fugido do circo, como o delegado pensou. E a velhinha descrevia o que o porcão estava fazendo: “ele pegou um pé de alface com o rabo e... ai que horror, seu delegado!”
Mas ele não queria ter lembrado da piada. Tinha de se concentrar no elefante da véspera. Foco, garoto, foco. “Filho da puta”, pensava Serginho. “Vou levar o bebum lá e o filho da puta vai enfiar o bilhete azul no... foco!” Foco, Serginho!
– Fala mais do elefante, seu Ativo.
– O olifante. Muito grande. Rabo grande, boca grande. Muito grande e muito forte, o olifante, rapaz. Eu vi.
– Você viu o estrago que ele fez no Passat.
– É, ha-ha-ha. Ele fez um estrago num Passat, rapaz! Tinha que ver!
– E depois ele foi embora?
– É. Depois ele foi embora.
– O senhor viu para onde ele foi?
– Para onde ele foi?
– Não sei. Mas o senhor viu mesmo, né?
– Claro, rapaz! Não te falei que eu vi? Pois então eu vi.
– Não; é que ninguém daqui de perto viu.
– Chhhh! – fez Ativo com o indicador na frente da boca. E quase cochichando:
– Claro que eles viram! Todo mundo viu. Só não podem falar. Se disserem que viram o elefante, os outros vão falar que eles estavam bêbados. Ou que são loucos! Foi a mesma coisa quando São Jorge passou voando aí na praça, montado no dragão.

• Celso Paraguaçu •