domingo, 27 de julho de 2008

Reservados


Quando a umidade começou a incomodar, Otávio percebeu que já não estava tão assombrado. A decepção fora gigantesca, a ponto de lhe turvar a vista e quase fazê-lo desmaiar. Mas já se estava acostumando com a dor, já sentia o desconforto do muro frio em que se encostara.

Levantou-se e caminhou pelas sombras até o portão, abriu-o silenciosamente e tomou o caminho que, minutos antes, havia percorrido com alegria e preocupação. Era melhor voltar.

Por entre as sombras da noite, ia pensando na intensidade das emoções que explodiram naquele dia. O assalto, a morte, o necrotério, a vida, a alegria, a perturbação do espírito. Não entendia como ainda estava vivo, como o coração agüentara, como as veias não estouraram. Estava vivo.

Melhor que não estivesse. A tristeza de ter ouvido a mulher dizer aquilo só não foi maior do que o efeito causado pela declaração da filha.

— Eu tinha me resignado, mãe — ouviu Dirce dizer. — Se tivesse forças, teria me separado de Otávio há anos. Não foi por causa das crianças não, mãe. É que eu já não tinha mais forças mesmo. Não ia conseguir refazer minha vida... Sim, Otávio era um bom homem. Só isso, um bom homem. Era honesto, trabalhador... Calmo, eu não sei se era. Nunca se alterou em casa, nunca levantou a voz. No máximo, ia dormir sem palavra. Mas ele era triste, mãe. Não tinha alegria. Quase vinte anos de casamento e nunca vi o Otávio rir. Sorriso, só uma vez, na fotografia do casamento, depois nunca mais. Nem antes. Não era brabo, não era sisudo, era triste. Uma tristeza contagiosa. Não, nunca reclamou de nada. Nem de comida ruim. Deus me perdoe, mãe, mas cheguei a fazer sopa sem sal para ver se ele esbravejava, se fazia algum comentário. Nada! Nem mesmo pediu sal para pôr no prato. Tomou a sopa sem sal e não disse palavra. Parecia que nem sentia o gosto. Não sei se tinha alguma dor, nunca falou nada. Talvez tivesse alguma coisa, mas nunca disse um ai. Nunca, nada.

Otávio tinha vindo cuidadosamente observar como estava a situação em casa quando ouviu a voz lamentosa da mulher. Ela não chorava; lamentava-se da vida miserável, não da morte do marido. Ele sabia agora que sua morte tinha sido um alívio para ela. Nunca imaginara que seu jeito reservado causasse tanto desagrado à mulher.

Esperava encontrar a casa cheia de amigos e parentes. Viriam dar os pêsames a Dirce, saber se precisava de alguma coisa, dizer que se precisasse era só falar. Mas não. A mãe dela na cozinha, a mãe dele no quarto, com a menina, e só. Nem o sogro viera. Nem o cunhado. Amigos, não tinha. Talvez alguma vizinha tenha vindo mais cedo, durante o dia. Mas à noite, quando ele chegou, só a mãe dele e a mãe dela.

Ele não sabia que significava tão pouco para Dirce, só tristeza. Julgava-se um bom marido, raramente deixava faltar alguma coisa em casa, e se nunca atendeu um capricho da mulher foi porque ela nunca expressou desejo algum. Sempre foi reservada, como ele. Era o que ele pensava. Mas não era reservada, era triste.

E a menina...

— Sabe, vó — ele ouviu, do lado de fora, a triste voz da filha, enquanto digeria as duras palavras de Dirce, que ainda ecoavam em sua cabeça agora vazia. — Pelo menos agora vou poder usar roupas escuras na escola — dizia a menina. — Acho que quando a gente está de luto pode ir de roupa preta, cinza, não precisa usar uniforme, né? Não posso dizer para a senhora que não gostava dele. Mas também não digo que gostava. Não, eu não vou sentir falta. Tanto faz. Quase nem percebia quando ele estava aqui. Às vezes me fazia um afago na cabeça, mas eu não gostava. Não me lembro de um dia alegre na minha vida, vó, nenhum dia. Tinha natal, aniversário, mas não tinha alegria. Só nós três. Depois veio o Nenê. Acho que é por isso que o Nenê não fala. O pai também não falava, nem a mãe. Na escola eu falo. Se alguém me pergunta alguma coisa eu respondo. Mas não puxo conversa com ninguém não. Agora acho que vão conversar menos comigo, porque estou de luto.

Otávio sentiu as pernas afrouxarem e encostou-se no muro úmido para não cair. E lá ficou, pensando, pensando, até que a umidade começou a incomodar. Agora Otávio iniciava a autocrítica. Não devia mesmo ter sido um bom pai, porque nem mesmo sabe o que significa ser pai. As crianças nasceram, com bom intervalo entre as duas, e só. Ele passou a ser pai delas. Realmente não era dado a carinhos. E nunca precisou repreender a menina, sempre tão reservada. O menino ainda era muito pequeno, só quatro anos.

O que ele sentiu quando ouviu as duas conversas é que tinha se preocupado à toa no caminho entre o necrotério e a casa. Acordara de repente, em cima de uma mesa gelada, e não reconhecera o lugar em que estava. Depois, aos poucos, foi se dando conta da situação. Estava no necrotério. Deviam ter pensado que ele estava morto. Era melhor sair dali antes que chegasse o patologista e lhe cortasse o corpo em busca da causa mortis. Sim, a causa mortis. Morrera de quê? Quer dizer, não estava morto, mas que teria acontecido com ele?

Aos poucos veio-lhe a lembrança de ter encontrado um assaltante dentro da loja, quando abriu a porta pela manhã. O susto foi enorme e ele não se lembrava de mais nada. Teria sido baleado? Apalpou-se, mas não sentiu nada, nenhuma dor nem sinais de sangue na roupa. Só nesse momento percebeu que estava vestido. Será que foi um ataque do coração? Mas estava vivo, e não sentia dor. Será que não haveria autópsia? Iam mandá-lo diretamente para a funerária? Ou será que a funerária preparava os cadáveres no necrotério mesmo? Otávio não sabia. Nunca teve interesse nesse assunto. Aliás, nem nesse nem em nenhum outro. Só sabia que estava vivo.

Saiu do necrotério esgueirando-se, aproveitando a escuridão da noite sem lua, e foi para casa a pé. Andava rente às paredes, temendo encontrar algum conhecido. Precisava dizer a Dirce que estava vivo. Quando ouvia vozes, escondia-se atrás do tronco de uma árvore, de uma banca de jornais, de um carro, até que as pessoas passassem. Temia que o vissem, como se estivesse sendo procurado por assassinos. Enquanto estava escondido, pensava em como avisar a mulher sem lhe causar um susto fatal. Ela não acreditava em espíritos, fantasmas, ele achava. Mas podia morrer com o sobressalto de vê-lo em pé na porta.

Imaginava encontrá-la aos prantos, abraçada com a filha também desfeita em lágrimas, rodeadas ambas pelos parentes, amigos e vizinhos. Deveria haver alguém com quem pudesse falar, em vez de aparecer na porta de repente. O sogro, talvez. Ou o cunhado. Não pareciam ter medo de assombração. Ele poderia explicar que estava vivo, e o parente entraria na casa, irradiando alegria e dizendo: “Gente, o Otávio não morreu! Ele está vivo e vem vindo para casa!”

Seria uma alegria imensa, ele imaginava. Uma alegria como nunca houvera naquela casa. Mas agora, pelas palavras da mulher e da filha, ele se dava conta de que naquela casa jamais houve alegria mesmo. É. A decisão estava certa. Faltava pouco, agora.

Otávio atravessou a rua e entrou às escondidas novamente no necrotério. Ouviu vozes, talvez um pouco alteradas, uma discussão, e achou que o assunto podia ser o seu sumiço. Mas na sala em que estivera, tudo estava calmo e na penumbra. Deitou-se outra vez na mesma mesa fria de antes, cruzou as mãos, fechou os olhos e morreu.

• Celso Paraguaçu •

terça-feira, 8 de julho de 2008

A sucinta e odiosa história da sereiazinha que não sabia nadar



Ela se afogou.

• Celso Paraguaçu •

sexta-feira, 30 de maio de 2008

The show must go on


— E aí Jorge! Como é que vai essa força?

— Oi.

— Ih, tá de lua outra vez, cara?

— É, não tou legal. Me deixa sozinho, faz favor.

— Ah, não, meu. Vamos pôr para cima esse espírito guerreiro.

— Não enche, tá?

— Qual é, Jorjão? Ainda estamos no comecinho do quarto minguante, praticamente lua cheia. Não tem razão para você ficar assim.

— Tem, sim, Drão. Eu perdi tudo.

— Perdeu o quê? Olha toda esta lua, só para nós e aquele seu pangaré. Tem um pouco de lixo que os astronautas deixaram, as bandeirinhas, uns pedaços de lata, aquele jipinho ridículo, mas tem espaço à vontade para nós.

— Não é isso, Drão, é que sou um fracasso, não percebe?

— Você? Quem fracassou fui eu. Quem levou aquela espetada de lança fui eu. Você foi o cara que matou o dragão, virou herói e depois santo, lembra? Eu perdi, você ganhou.

— Você não entende, Drão. Eu perdi a devoção das pessoas. Para um santo, a devoção é tudo; quando perde isso, não tem mais nada. Eu era popular, talvez o mais popular de todos, todo mundo gostava de mim. Até no candomblé eu tinha lugar de honra. Mas as pessoas agora desconfiam de mim.

— Isso é frescura de prima-dona, Jorjão. Nunca ninguém gostou de mim e nunca senti falta disso.

— Então, cara! Você não perdeu porque que nunca teve. Na verdade, até que você é querido atualmente. Tá cheio de filmes, desenhos animados japoneses e jogos eletrônicos em que o herói é um dragão. Ou pelo menos o dragão ajuda o herói.

— Pois agora quem está ficando pra baixo sou eu. Sempre em segundo plano, sempre coadjuvante, nunca o ator principal.

— Mas são histórias humanas, Drão. O herói tem de ser humano, não pode ser o dragão.

— É. Mas você também não tem do que reclamar. Está aí chorando de barriga cheia.

— Como barriga cheia? Eu fui cassado, esqueceu? O papa disse que eu era uma lenda e não podia ser santo. Cassou minha carteirinha! A minha, a do Cristóvão e de mais uns três ou quatro.

—A sua carteirinha já lhe foi restituída. Você recuperou o status de santo. Foi cassado, mas o Vaticano voltou atrás. Desde quando o papa manda mais que um santo?

— Ah, Drão, santo não manda nada. O papa sim. Ele faz leis, éditos, manda e desmanda. Nós, no máximo, fazemos um ou outro milagrezinho.

— Milagrezinho? Você chama de milagrezinho? Você não se lembra do Viola, do Vampeta, do Biro-Biro? E mesmo assim o Timão ganhava um jogo ou outro! Isso não era milagrezinho, não! Era um milagre mesmo! E dos grandes!

— É por isso que estou triste, Drão. Deixaram cair minha imagem em plena procissão do meu dia, lá no Parque. Voou caco para todo lado. Eles não me respeitam mais, perderam a devoção. Acho que foi porque no ano passado não consegui evitar o rebaixamento.

— Também, com aquele time, acho que nem o Nazareno ia conseguir.

— Não brinca, Drão, que Ele pode não gostar.

— É, foi mal. — e, olhando para cima, — Desculpa aí, Chefia! Mas Jorjão, no candomblé a moçada ainda faz muita festa para você.

— Isso é verdade.

— A torcida do Timão ainda te curte muito.

— Bem, eles ainda acendem muita vela...

— E você continua sendo o santo oficial de Portugal e da Inglaterra.

— Portugal, tudo bem, mas na Inglaterra eu já não sei. Os súditos até gostam de mim, mas acho que já não sou mais o santo oficial. Antes a rapaziada gritava “Por São Jorge e pelo Rei” e fincava a espada nos inimigos. Isso até deve ter pesado contra mim, sabia? Como é que um santo podia ajudar o invasor, que vinha roubar riquezas e matar pessoas? Eu não favorecia, você lembra. A gente ficava só vendo a briga, sem beneficiar ninguém. Teve até aquela vez na Zululândia, lembra? Foi triste, fizeram até filme. Os zulus dizimaram o exército britânico. Um massacre!

—Aquela vez foi demais! Não ficou um casaca vermelha vivo, uau! Os zulus deram o maior pau no Império Britânico! Foi da hora, mó legal!

— Você vê que a gente nem torcia pelo mesmo lado. Como é que eu podia ajudar alguém, se você era contra?

— Ah, espera aí, meu! Ninguém pedia minha proteção não. Mesmo porque, eu perdi a luta. Não se pede ajuda de um vencido. Os guligans chamavam o seu nome.

—Evocavam meu nome e passavam os inimigos a fio de espada. Isso pode ter pegado mal, pode ter influenciado o papa, quando ele resolveu me cassar. Eu fiquei arrasado, reduzido a subnitrato de pó de traque. Sabia que mudaram os santos das igrejas antes dedicadas a São Jorge? Tinha uma pequenininha de que eu gostava, bem pobrezinha, que passou a ser de Santa Isabel. Só porque o bairro se chamava Vila Isabel. Já imaginou? Trocaram um bravo guerreiro, como eu...

— Vai devagar, Jorjão. Nem tão bravo assim, hein? Eu tava lá tomando um solzinho, de barriga para cima, você chegou de repente, montado no pangaré, e nem tive tempo de me virar. Você me fincou a lança na goela. Doeu, viu? Ainda dói um pouquinho, quando o tempo esfria.

— Desculpe, Drão, mas eu tinha de fazer isso. Estavam dizendo que você ia comer a princesa.

— E você acreditou? O que esse povo faz de fofoca não está escrito! Cê acha que eu ia comer aquela coisinha magricela, descarnada? Só servia para palitar os dentes. Você não me conhece mesmo. Eu gosto de mulheres mais substanciosas, Jorjão. Com mais carne. Essas magricelinhas, para mim, são verdadeiros dragões.

—Eram outros tempos, aqueles, Drão. Eu era muito jovem, entusiasmado, ia no embalo da torcida. Nem precisava ter princesa na parada. Se a moçada gritava “Mata!”, eu matava mesmo.

— Ahã, desde que o dragãozinho estivesse de barriguinha para cima, tirando um cochilo ao sol...

— Eu já te pedi desculpas mil vezes, né? Não te conhecia, não sabia que você era gente boa.

— É, foi chegando e enfiando a lança... matar primeiro e perguntar depois, tipo tropa de elite.

— Ah, Drão, naquele tempo era assim. Não tinha essa coisa de direitos humanos.

— Draconianos, Jorjão. Direitos draconianos.

— Olha, acho bobagem a gente ficar discutindo isso outra vez. Aquele papa disse que nossa luta nunca aconteceu, que era uma lenda. É isso que somos, Drão, apenas lenda.

— Nós, quem, cara pálida? Eu sempre fui lenda. Pode ser novidade para você, mas eu nunca existi de fato. No passado uns chineses encontraram uns fósseis de dinossauros alados e chamaram aquilo de esqueletos de dragões. Nunca viram um dragão, mas se o esqueleto existia, os animais deviam existir também. Tem lógica, só que não existiam os dragões cujas feições eles criavam. Inventaram uma infinidade de dragões que podiam ter usado aqueles esqueletos. Só que os esqueletos eram de répteis alados extintos.

— É duro, né? Eu também fui rebaixado a lenda, ainda menos real do que você, porque nem tenho um esqueleto que faça supor minha existência. Foi o que o papa disse, uma lenda.

— Mas é o que eu estou te dizendo, Jorjão. Isso já foi consertado, você recuperou seu status de santo.

— É que fiquei magoado...

— Sei...

— E o povo perdeu a fé em mim... Não é mais como antes...

— Deixa disso, boneca. Seus admiradores continuam rezando em seu nome, fazendo promessas e oferendas. Você continua com a bola toda, Jorjão. Chama lá o pangaré e vai buscar sua lança que eu já vou me deitar aqui de barriguinha para cima. Está quase na hora da Lua surgir lá na Terra. The show must go on.

• Celso Paraguaçu •


terça-feira, 20 de maio de 2008

O grande buraco debaixo da Europa



Em julho ou agosto deste ano entrará em operação o Large Hadron Collider, ou simplesmente LHC, como é conhecido entre os físicos. O LHC, que faz parte do Centro Europeu de Pesquisas Nucleares (Cern, na sigla em francês), está instalado em um túnel circular de 27 km de extensão escavado a 100 metros da superfície, em média.

Escavar o túnel deve ter dado uma dor de cabeça danada. A freguesa já imaginou o tamanho do compasso necessário para desenhar um círculo de 27 km de extensão? O raio do tal túnel tem, segundo meus cálculos, quase 4.300 metros. Quem seria capaz de fazer girar esse compassão? E como é que os caras fizeram para traçar o risquinho do compasso 100 m abaixo da superfície? Os engenheiros tiveram de relembrar todas aqueles contas que aprenderam a fazer no cursinho.

Dá para imaginar a cena. Ao lado do operador do tatuzão, a máquina inventada para fazer túneis, vai o engenheiro, usando um daqueles ridículos capacetes de plástico colorido. Tem nas mãos uma pranchetinha de plástico que já vem com calculadora, fabricada na China e comprada no camelô da esquina. De vez em quando, ele faz umas contas, manda parar a máquina, se afasta um pouco, verifica a bússola e diz:

— Mais para a direita um pouquinho, Severino.

Passa um tempinho, ele manda parar a máquina de novo, refaz os cálculos e diz: “Para a esquerda agora, mas não muito.” Severino, como bom trabalhador de obra, obedece sem discutir, mas já percebeu que não vai dar; o fim do túnel não vai coincidir com o começo. Dois dias depois, o engenheiro chega meio sem jeito:

— Severino, vamos ter de voltar uns três quilômetros. Naquele ponto em que você virou um pouquinho para a direita era para ir em frente. E fique de olho no nível, senão a gente sai acima ou abaixo do ponto inicial.

Na cerimônia de visitação do túnel, em 6 de abril passado, ninguém falou quantos inícios errados de espirais foram feitos, caracóis para fora e para dentro do círculo, para cima e para baixo. Foram muitos, certamente. Mas finalmente conseguiram fazer as duas pontas se encontrarem. E aí encheram o túnel de tubos de vidro, de peças de metais variados e muitos quilômetros de fios.

Todo esse trabalho tem uma justificativa. Os físicos querem compreender melhor a Natureza. Farão com que alguns prótons se choquem, cada um vindo de um lado do túnel quase à velocidade da luz e sem freio, para que se dividam em seus componentes fundamentais, os quarks e bósons, partículas responsáveis por três das quatro forças da natureza: eletromagnetismo, atração nuclear forte e atração nuclear fraca. São estas que mantêm os quarks reunidos em porções maiores de matéria, como os prótons. Também permitem que os prótons fiquem grudadinhos, mesmo tendo todos carga positiva. A quarta força é a gravitacional. Os cientistas acham que a força gravitacional fica de fora nesses experimentos. Não fica, mas eles pensam que fica, os tolinhos. O tal do bóson, que explicaria muita coisa, nem se sabe se existe mesmo. Mas os maluc... os físicos esperam detectá-lo no LHC.

A freguesa não precisa se preocupar com as trombadas dos prótons. Nem mesmo se tiver algum parente na Suíça que ganhe a vida prosaicamente, criando meia dúzia de vaquinhas leiteiras nalgum vale 100 metros acima do grande túnel. Não haverá cogumelos atômicos jogando as vacas para o ar. Os choques de partículas não produzirão energia suficiente nem para acender um cigarro. O que, aliás, é proibido no LHC.

Ao compreender melhor os fenômenos físicos da Natureza, os cientistas darão consistência a certas teorias, como o Modelo Padrão. Teoria é uma explicação para um determinado fenômeno. Não passa de uma hipótese, que precisa ser comprovada para ser universalmente aceita e virar Lei da Física. Quando Einstein disse que a luz era desviada por corpos de grande massa (os de pequena massa também a desviam, mas seria mais difícil constatar nestes), foi preciso esperar por um eclipse total do Sol para comprovar se a teoria estava certa ou não. Estava, antes que a freguesa me pergunte.

Conhecer as forças atuantes na Natureza tem muita utilidade. Quando a freguesa deixou cair acidentalmente aquele horrível vaso de porcelana que ganhou da sogra, o que fez, fisicamente, foi expor a pavorosa peça à ação da força da gravidade. O vaso não caiu; foi atraído pela grande massa do Planeta Terra. Ao chegar ao chão houve um choque de forças, a da gravidade contra a da superfície, exercida em igual intensidade, porém em sentido contrário, como explicou Newton. O resultado do choque interferiu nas forças que mantinham coesas as partículas que constituíam o vaso, causando a fragmentação do objeto. Em outras palavras, aquela coisa horrorosa espatifou-se.

Mas o ímã de geladeira com o telefone da distribuidora clandestina de gás de cozinha não cai. Fica grudado como se tivesse algum tipo de adesivo. É a força eletromagnética que o mantém lá, superando a ação da gravidade. A freguesa poderia perguntar de onde vem o “eletro”, se o cartãozinho não tem pilha. A resposta é simples: eletricidade e magnetismo são forças complementares, uma gera a outra. Um ímã é puramente magnético apenas quando está parado. Ao se movimentar, induz uma corrente elétrica em qualquer condutor que esteja por perto. Como no Universo nada está parado, salvo as obras públicas que não dão voto, o ímã de geladeira também é eletromagnético.

Está, pois, explicado o envolvimento de quase 10 mil físicos, dentre os quais 68 brasileiros, e o investimento de quase 9 bilhões de dólares desde 1993 na construção do LHC. Em poucos anos a Ciência permitirá o desenvolvimento de novas tecnologias que propiciarão o aperfeiçoamento dos ímãs de geladeira.

• PGC •

quarta-feira, 30 de abril de 2008

Evangelizador fracassado




— O próximo! — gritou o centurião.
O soldado se aproxima, trazendo pelo braço um velho malvestido, como costumavam se vestir os judeus pobres daquele tempo.

— Então, judeu, você estava na catacumba?

— Não. E também não sou judeu, sou da Samaria.

— Não? Então não devia estar aqui. Isto é o interrogatório das pessoas que foram capturadas nas catacumbas na noite passada.

— Eu já estou preso há muito tempo.

O centurião nem quis saber por que o velho estava preso. Os romanos costumavam encarcerar pessoas sem dizer a razão. Provavelmente o velho também ignorava seu delito, mas sabia que se apanhava menos ficando preso sem chiar. Ademais, depois de um duro dia de interrogatórios, o centurião estava irritado. Vários de seus companheiros de farda se haviam convertido à nova religião depois de perseguir e interrogar subversivos que se reuniam em catacumbas. Estava virando moda a nova religião.

O monoteísmo era mais prático, bem ao gosto dos pragmáticos romanos. Foram eles, por exemplo, que transformaram os enrolados pergaminhos em livros. Em vez de desenrolar seis ou sete metros de pergaminho, bastava folhear até a página vinte. Eles também institucionalizaram o sistema decimal, a começar por seus exércitos, que eram divididos em centúrias – cem soldados – e estas em decúrias.

Mas na hora de fazer sacrifícios religiosos, precisavam saber qual era o deus adequado a suas intenções. Se fizessem um sacrifício para o deus errado, podiam acabar apaixonados pelo inimigo. O monoteísmo era muito mais prático. Endereçava-se o sacrifício a um único deus e este se incumbia de providenciar a ajuda mais conveniente. E vinha se disseminando a idéia de pequenos sacrifíciozinhos semanais em vez de grandes e eventuais hecatombes. Era o conceito de prestação semanal que os judeus introduziam em Roma.

Mas o centurião não queria abraçar o monoteísmo só pela moda. Precisava de uma razão mais forte. Estava disposto a ser convertido, mas não dava sorte com os interrogados. Não era a primeira vez que passava o dia fazendo perguntas aos catacumbeiros. Argumentos convincentes, porém, jamais lhe foram apresentados. Todos contavam histórias que tinham ouvido. Ninguém presenciara milagre algum, ninguém jamais tinha ouvido pessoalmente o tal Cristo, ninguém o havia conhecido. Não havia nada de sólido para alicerçar sua possível conversão ao monoteísmo. Além disso, estava cansado e queria ir embora logo.

— Soldado! Leve este homem daqui. E traga o próximo que estava nas catacumbas!

— Ele é o último. O decurião mandou que eu o trouxesse. Disse que deveria lhe interessar.

— Leve-o de volta. Estou aqui para interrogar os subversivos das catacumbas. Este velho não estava entre eles.

— Mas centurião, não posso levá-lo antes que o senhor fale com ele. Foi o que disse o decurião.

— Ninguém pode servir a dois senhores. — comentou o velho em voz baixa.

— Hein? — perguntou o centurião.

— Ele disse que ninguém pode...

— Calado, soldado!

— ... servir a dois senhores.

— Foi isso, velho?

— Sim. O moço disse isso uma vez. O respeito à hierarquia é um bom princípio de administração. E o respeito tem de se dar de cima para baixo também. Nem mesmo o chefe da guarda do palácio pode dar uma ordem a um escravo de César. O escravo de César só deve obediência a César.

— Esse moço de que você fala era romano? Um soldado?

— Ah, não, era um civil, nascido em Belém, na Judéia. Boa pessoa. Fazia cada uma!

— E se chamava Jesus?

— Esse mesmo, filho de José, o carpinteiro. Conhece?

— Então você é um desses que se reúnem nas catacumbas!

— Não, eu sou só um prisioneiro. Aqueles caras que freqüentam as catacumbas se dizem seguidores das idéias de Jesus, que eles chamam o Nazareno, mas nem o conheceram.

— E você o conheceu, suponho... — ironizou o centurião.

— Sim, nos bons tempos.

— Bons tempos?

— É, eu era jovem. Foi em Caná, ele ainda não era um líder das massas. Estava com a mãe, Dona Maria, os irmãos e alguns amigos. Era um sujeito divertido. Estávamos num casamento, bela festa, mas com mais convidados do que vinho. Quando o vinho acabou, a mãe do moço foi falar com ele. Pois acredita que ele transformou água em vinho? Água em vinho! Fiquei pasmo! E era vinho bom, muito bom. Posso dizer porque conheço um pouco de vinhos e bebi daquele. Muito bom mesmo.

— Você diria que presenciou um milagre?

— Não, era vinho mesmo! Muito bom. Quando a festa acabou, o moço foi para Cafarnaum, com a mãe, os irmãos e os amigos. Eu fui atrás. Os judeus não gostam que os samaritas andem com eles, então eu ia a uma certa distância. E comecei a seguir a turma dele. Queria estar por perto quando ele fizesse aquilo de novo, transformar água em vinho. Eu não era apóstolo, como ele chamava os mais chegados, nem era discípulo. Só andava por perto. Sempre tinha muita gente em volta dele, buscando cura para cegueira, aleijões, lepra, possessões demoníacas. Ele curava tudo isso sem receitar um chazinho, uma erva, nada. Simplesmente dizia: “Está curado”, assim como quem acaba de consertar uma sandália ou costurar uma roupa rasgada. Ou então: “Tua fé te curou”. E os aleijados saíam andando, os cegos começavam a ver, os leprosos saravam, até mortos ressuscitavam. Ia juntando cada vez mais gente, mas ele foi perdendo a alegria, foi ficando muito sério, só falava de fé, de reino de Deus, essas coisas. Ainda continuei andando atrás da turma durante um bom tempo. Mas o moço perdeu a alegria e eu parei de acompanhá-los.

— E você viu tantos milagres, ouviu as palavras de Jesus e não se converteu a essa nova religião?

— Olha, para falar a verdade não dava para ouvir direito não. Geralmente quando ele começava a falar para a multidão tinha muito barulho. Havia muitas crianças, rindo e gritando, cabras e ovelhas berrando, cachorros latindo, mães e pastores ralhando, gente chorando, outros clamando para que o moço os ajudasse. A gente não conseguia ouvir praticamente nada do que ele falava. E eu achava essas grandes reuniões muito chatas, então me afastava e ficava olhando de longe. Só voltava para perto da turma quando a massa tinha ido embora.

— Mas viu muitos milagres, não viu?

— Se você quer chamar de milagres, vi sim, inúmeros.

— E não ficou impressionado?

— É, o moço era bom mesmo. O que ele curava de gente estragada não era mole. Mas o que eu gostava mais era quando ele fazia o vento parar de soprar, o céu ficar claro em plena tempestade, ou quando alimentava multidões com uma cesta de pães e uns poucos peixes. Mas ele foi ficando triste... Dever ter sido excesso de trabalho. E eu acabei me afastando.

— Só porque ele ficou triste?

— É. Durante mais de dois anos eu andei atrás da turma. Ele esteve com os amigos no mar da Galiléia, no rio Jordão, e eu por perto, com minha canequinha presa no cinto. Estava preparado para o dia em que ele transformasse água em vinho outra vez. Não faltou oportunidade. Quando comecei a desconfiar que ele nunca mais faria isso, caí fora.

— Soldado! Leve este pau-d’água de volta para a prisão!


Celso Paraguaçu



sexta-feira, 21 de março de 2008

A falta da cabrita



— Eu não gosto de médico.

— Eu sei, mas é só um checape.

— Fiz um no ano passado e ’tava tudo bem. Isso é igual carteira de motorista, só tem de renovar de cinco em cinco anos.

— Mas não é para ver o coração, é outra coisa... Sua cabeça. Não está muito bem e pode ser o mal de Alzheimer.

— Você está delirando! Eu nunca escapei marcha!

— É, mas ontem, quando eu falava com a Ana Cláudia, você veio com uma conversa totalmente sem propósito. Pode ser um sinal do mal de Alzheimer e é bom ver isso logo, pois se pegar no começo o tratamento funciona.

— Conversa sem propósito? Vocês duas nem me deixam abrir a boca quando estão de prosa!

— É conversa de mulher, você não entende.

— O que vocês conversam de nível tão alto que eu não consigo entender?

— Muitas coisas. Ontem, por exemplo, estávamos falando de sinais; dos sinais que aparecem na vida da gente e nem sempre se sabe interpretar. Ela acredita nos sinais, mas acha que são as forças do universo que os põem à nossa vista. Eu acho que é Deus. A Lúcia tem certeza de que são os astros.

— A Lúcia não vale. Ela é pirada.

— Não é não. Ela é astróloga. E muito boa. Você devia respeitar mais sua filha.

— Eu respeito. Mas acho que ela é piradinha. Veja a Ana Cláudia: ainda é quase uma menina, mas tem a cabeça no lugar, sabe o que quer da vida...

— E vai se casar.

— Então... Quem? Quem vai se casar, a Aninha? Você está louca?

— Vai para a Alemanha e vai se casar.

— Mas como? É uma menina!

— Tem a idade que eu tinha quando nos casamos. E já é mais velha do que a Lúcia era quando se casou.

— Mas a Lúcia é uma pirada.

— Não é pirada não. É socióloga, competente, famosa, doutora. E também é astróloga, porque nós, mulheres, somos múltiplas. Você mesmo não diz que a lasanha da Lúcia é imbatível? E você acha que ela aprendeu a fazer lasanha na Sociologia ou na Astrologia? Não; é porque ela é mulher, é múltipla. É profissional, é mãe, é artista, é astróloga, é motorista, é dona-de-casa, é professora, é pesquisadora, é múltipla.

— Mas a Aninha vai se casar mesmo?

— É, ela conheceu um rapaz na universidade, um bolsista da Alemanha, e acha que identificou alguns sinas de que ele é o homem da vida dela.

— E por causa dos sinais, vai se casar.

— É. Vai terminar a universidade, vai se casar, fazer mestrado na Alemanha. Como você disse, ela sabe o que quer da vida.

— Ah! Eu pensei que ela ia se casar logo. Mas se vai esperar o fim do curso, vai ter de concorrer a uma bolsa de mestrado... ainda demora. E acaba nem se casando com o alemão. As moças são assim, se apaixonam, se desapaixonam... Coisas da juventude.

— Pode ser. Mas acho que desta vez é pra valer. Ela está muito impressionada com os sinais que diz serem uma expressão das forças do universo.

— Isso é influência da pirada da Lúcia! Aposto que ela fez o mapa astral do rapaz e disse que ele combina com a Aninha.

— Não é não. Eu não sei que sinais são esses que ela diz ter identificado, mas ela ainda nem falou com a mãe. Veio conversar comigo ontem porque sabe da nossa história, que a Lúcia contou para ela.

— Que história?

— Eu nunca lhe falei, mas quando vi você pela primeira vez, sabia que viveria com você até o fim de meus dias. Eu tinha recebido um sinal.

— De Deus?

— Eu acho que foi. E quero pensar que foi. A Lúcia acha que foram os astros e a Ana Cláudia diz que são as forças do universo. Mas eu prefiro pensar que foi Deus.

— E Deus disse que você ia casar comigo?

— Não é assim que a coisa funciona, Aurélio. Vocês, homens, são tão simplistas, tão infantis que chegam a irritar. Você acha que Deus chegou para Moisés e falou: “Anota aí, meu filho, os dez mandamentos da minha lei.” Não é assim. A gente tem de sentir que uma coisa é um sinal, tem de interpretar a manifestação divina. Não é tudo claro e simples. Bem, no caso do Moisés acho que foi, sim, porque ele era homem. Se os sinais fossem mais complexos talvez ele não entendesse.

— Vocês mulheres têm uma implicância com o raciocínio masculino...

— ’Tá, ’tá, deixa o Moisés para lá. Mas foi por isso que eu nunca lhe falei do sinal. Porque achava que você não entenderia. Com as meninas é diferente. Eu contei para a Lúcia quando ela era mocinha e ela contou para a Aninha. Elas entendem isso. Por isso é que gostam tanto de você. Elas sabem que estamos destinados a viver juntos até a morte.

— Mas que sinal foi esse?

— Eu não vou contar, porque você não ia entender e podia até ficar fazendo piada com algo que eu acho que é sagrado. É só para mim.

— E para a Lúcia, e para a Aninha...

— Para elas, sim; porque a felicidade delas pode depender disso, de interpretar corretamente um sinal, como eu fiz.

— Mas quando foi que você viu esse sinal?

— Ah, foi um instante antes de a gente se ver pela primeira vez. Eu levei um tremendo susto, mas depois senti que aquilo era um sinal.

— Você está falando daquela vez que a gente se encontrou naquele bar em que todo mundo ia, como chamava mesmo?

— O “Amarelo”. Mas foi antes. Quando a gente se cruzou no Amarelo eu já sabia que você era o homem da minha vida. O sinal foi antes, da primeira vez que a gente se viu, naquela estrada, quando meu carro saiu da curva e você veio me socorrer. Não se lembra?

— Lembro, você estava muito assustada, e como era bonita! Dizia que a curva da estrada estava cercada de caixões de defuntos, quase não conseguia respirar. Aí eu lhe dei um pouco de água, você se acalmou e foi embora. E na noite seguinte nos encontramos no Amarelo.

— É, e eu fiquei falando de mim o tempo todo. Duas semanas mais tarde, quando você disse que estava trabalhando temporariamente numa funerária, eu tive certeza absoluta de que minha interpretação do sinal estava correta. Era isso mesmo, você era o homem da minha vida.

— Mas e o sinal?

— 'Tá vendo? Eu falei dele e você nem percebeu. O sinal foi a curva cercada de caixões. Onde se poderia ver uma curva de estrada toda murada com caixões de defunto? Claro que eu me assustei. Era noite alta, eu sozinha numa estrada sem movimento algum, com medo de ficar com sono, e quando entro na curva vejo uma muralha de caixões de defunto, como não me assustaria? Mas depois que me acalmei e voltei para a estrada, compreendi que não havia caixão nenhum, que aquilo tinha sido um sinal de que estava próximo o instante de encontrar o homem com quem eu viveria até a morte. E encontrei você, que foi me socorrer. Não acha que foi um sinal?

— ...

— Não acha que foi um sinal?

— É, acho que sim, não sei. Pode ter sido. Eu não entendo dessas coisas. Bem, se você achou que era, então devia ser mesmo, né?

— Mas você não vai fazer piada com isso, vai?

— Não, claro que não. Eu respeito suas maluq... suas idéias. Se você acha que foi um sinal, então foi, pronto. Um sinal divino. E não se fala mais nisso.

— Eu estava contando essa história ontem para a Ana Cláudia. Ela já a tinha ouvido da mãe, mas quis ouvir de mim, para conferir cada ponto. Foi quando você interrompeu para falar alguma coisa sobre uma cabrita, por isso acho que você precisa ir ao médico, para ver se não precisa de tratamento.

— Ah, não! — disse Aurélio sorrindo. — É que tinha me lembrado de uma história e ia começar a contar a ela, nem tinha percebido que você estavam conversando sério. E a história era uma bobeira, acho que ela nem ia gostar. Coisa muito infantil. Não preciso de médico não.

E não precisava mesmo. Aurélio se lembrava perfeitamente de tudo que acontecera na véspera. Sua intervenção pouco clara fora: “Faltou uma cabrita”. As mulheres não entenderam e ninguém entenderia mesmo. Mas Aurélio estava seguro de que tinha faltado uma cabrita.

A cena toda jamais saiu de sua cabeça. Só não contara para a mulher porque não queria ser acusado de quase tê-la matado de susto. E quem sabe se não foi mesmo o destino quem armou tudo? O destino, as forças do universo, os astros, Deus, sabe-se lá. Mas, quem quer que tenha sido, contou com a pequena ajuda do Samuel, que não sabia fazer uma cabrita.

Samuel trabalhava na marcenaria que fabricava urnas funerárias. Aurélio viera buscar uma carga para a funerária na qual trabalhava, mas não queria carregar o caminhão. Ele era motorista, carregador não. Deixou o caminhão parado na fábrica e foi jantar no Garrote de Ouro, enquanto Samuel e os companheiros faziam a carga caprichosamente.

A noite clara de lua dava uma boa garantia de que não vinha chuva. Não precisariam cobrir a carga com a lona. Caixões empilhados, encaixados, seguros, restava apenas amarrar a carga. E aí estava o busílis. Samuel era bom carregador, mas não sabia amarrar a carga. Passava a corda nas posições mais recomendadas, mas na hora de apertar a amarração, Samuel era um fracasso. Por nada deste mundo era capaz de fazer uma cabrita. E morria de vergonha disso.

A cabrita é um recurso usado pelos caminhoneiros para apertar a amarração das cargas. Se descerem com a corda e simplesmente a amarrarem num gancho da carroceria, a carga se movimenta no primeiro buraco e a corda se afrouxa. Por isso é preciso apertar a amarração com a cabrita. Faz-se um olho – ou uma orelha, depende de quem faz – a meia altura entre o alto da carga e o gancho, passa-se a corda pelo gancho e sobe-se novamente para o olho. Ou orelha. Ao ser passada pelo olho, a corda forma um laço e pode ser esticada ao extremo. O amarrador pode usar o peso do corpo para esticá-la. Aí sim a corda pode ser amarrada no gancho. Mas Samuel não sabia fazer a cabrita.

Por isso se afastou discretamente quando viu Aurélio chegando, com um palito na boca e acariciando a barriga satisfeito. O motorista pegou a nota fiscal, entrou no caminhão e partiu sem conferir a amarração da carga. As lombadas e valetas da cidade foram suficientes para afrouxar a corda . Aí foi só entrar na rodovia e, na primeira curva, ver os caixões deslizarem pela tangente e se espalharem no acostamento.

Felizmente havia um barranco, no qual os caixões que rolavam pararam. Ao ver a confusão, Aurélio entendeu que, mesmo depois de um lauto jantar, teria de assumir a função de carregador de caminhão. Ia suar um bocado, só porque o Samuel não tinha feito a cabrita. A corda era testemunha de que não fora feita uma cabrita.

Parou o caminhão mais à frente, bem depois da curva, e voltou para recolher os caixões. A melhor estratégia era juntá-los e depois aproximar-se com o caminhão. E só havia uma forma de reunir todas as urnas: apoiá-las no barranco, já que o acostamento era estreito. Assim Aurélio foi revestindo a parede do barranco com as urnas colocadas em pé, lado a lado.

Ao se afastar para pegar o caixão mais distante, percebeu, pelos faróis, que algum motorista se perdera na curva. A luzes iam para cá, para lá, até que o carro saiu da pista e entrou no pasto. Passou pertinho dele. Quando o fusquinha parou – sim, era um fusquinha, o que vocês queriam? – ele foi ver se o motorista precisava de ajuda e encontrou aquele lindo par de olhos, muito arregalados.

A moça, pálida de susto, gaguejando, arfando, dizia que tinha visto uma muralha de caixões de defunto ao lado da curva. Ele pediu que ela esperasse um pouquinho, enquanto ia buscar água no caminhão. Quando chegou com a água, a moça já estava bem mais calma. Ela bebeu um pouquinho, agradeceu, sorriu – e que sorriso! – e disse ter tido a impressão de que havia uma muralha de caixões de defunto cercando a curva.

Aurélio baixou a cabeça, com o peso da culpa, mas nem precisou se desculpar, porque a moça repetiu que devia ter sido impressão. Melhor assim. Não precisava explicar nada. Ele sabia que não era impressão, era realidade. E sabia que tudo aconteceu por falta de uma cabrita.

Pode ter sido um sinal. Se ela preferia pensar assim, tudo bem. Mas ele sabia, sabe, e levará o segredo para a tumba: sinal ou não, faltou uma cabrita.

[Não avisei antes, como faz o cinema americano de televisão, porque funciona como um alerta para mudar de canal. Mas a verdade é que este "causo" é baseado numa história real.]

Celso Paraguaçu

quinta-feira, 6 de março de 2008

A lista de Schindler



Não fui ver o filme, quando passou anos atrás. Também não li o livro. Suspeito muito de coisas de que todo mundo está falando. Em geral, se cai no gosto da massa não tem qualidade. Massa não pensa, apenas vai na onda, vai para onde os demais estão indo, sem perguntar nada. Se a freguesa já viu algum filme que mostrava as movimentações dos rebanhos de animais nas savanas africanas, sabe como é a massa. Basta que um comece a andar, para que todos andem. E o movimento se torna uma gigantesca migração.

É difícil distinguir no meio da massa qual é o indivíduo que decide movimentar a manada. Parece ser aleatório. Não há um líder, com características especiais. Qualquer gnu que tenha resolvido procurar um capinzinho mais fresco, mais verde, sai andando à toa, olhando para o chão. Instantes depois, todos os buzilhões de gnus estão andando na mesma direção do primeiro. Ninguém quer saber por que ele resolveu andar naquela direção nem por que se afasta. Todos vão atrás. Alguns até o ultrapassam, porque massa não tem líder. Um minuto depois do início da movimentação da boiada não se consegue mais identificar quem puxou o samba.

O próprio iniciador da caminhada já mudou de objetivo. De início, ele só queria um capinzinho fresco, mas quando viu todo mundo andando naquela direção, segue a tropa sem se dar conta de que foi ele que iniciou o movimento.

Assim são as modas, coisas tidas como espetaculares, que todavia não resistem ao tempo. Nas roupas – sobretudo, mas não unicamente, femininas –, nos ritmos populares, nos cortes e cores de cabelo, nos filmes e livros. A freguesa deve se lembrar de quando se tornou moda um tipo de sambinha brega cantado por grupos que tinham um vocalista chorão, não? A cada esquina formava-se um novo grupo, que escolhia nomes “criativos” como Sambobagem, Agonia do Samba, Samboiola, Sambiscate, etc. Algum desses grupos sobreviveu? Alguém ainda ouve essas músicas? É possível que em algum canto da remota periferia sobrevivam alguns pagodeiros, como se chamavam. Mas deixaram de atrair a massa.

A menção à periferia deve-se à observação de que nos limites da cidade as modas sobrevivem por mais tempo. Em geral há fortes manifestações culturais trazidas de outras partes, sobretudo a sólida cultura nordestina, que abrange desde o norte de Minas Gerais até a das profundezas do Maranhão ou do Pará. As modas sobrepõem-se à cultura importada como um protesto dos adolescentes, que desejam firmar-se como pertencentes à cultura urbana de massa e não à de seus pais e avós. “Vocês são sertanejos deslocados”, dizem eles ao mostrar seu anacrônico gosto pelo pagode, por exemplo, “enquanto nós somos parte da massa urbana, que não tem cultura, é apenas massa.” Só abandonam a moda antiga quando chega alguma moda nova que sirva aos seus propósitos de protesto.

Em geral, adolescentes são massa. Vestem-se de determinado modo ou agem como se gostassem de certo tipo de canção para serem reconhecidos como parte integrante de um grupo. Quando se tornam adultos, porém, podem desenvolver sua individualidade e personalidade. Podem escolher se vão continuar como massa ou se vão desenvolver o espírito crítico. A maioria, ao que parece, prefere continuar sendo massa. Dá menos trabalho. Não é preciso pensar se é bom, se é agradável, se é correto. Basta acompanhar a manada, fazer o que todo mundo faz, sem pensar.

É por isso que fico ressabiado quando ouço muita gente elogiando alguma coisa. Pode ser um cantor, um livro, um filme ou um esportista. Se muita gente está falando bem, provavelmente estão indo na onda e a coisa elogiada não tem qualidade. Por isso não fui ver “A lista de Schidler” nem tive interesse em ler o livro. Tinha muita gente dizendo que era ótimo.

Outro dia, contudo, dei de cara com a lista de Schindler. Estava na minha frente, exposta e clara, para quem quisesse ver. Observei cuidadosamente e concluí que meus conceitos sobre cultura de massa continuam válidos. A lista de Schindler não tem nada de mais. É meramente uma sucessão de letras e números. Começava em 8, depois 7,6,5,4,3,2,1, SL, T e SS. Igualzinha à lista de Otis e de Thyssenkrupp ou de qualquer outro fabricante de elevadores.

• PGC •



Que aconteceu com a lua?



Depois do eclipse de que foi vítima em fevereiro, a lua não apareceu mais. O fenômeno não me teria (ôpa!) chamado a atenção, pois não fico olhando a lua. Tenho mais o que fazer. Contudo, um de nossos fotógrafos, autor das misteriosas fotos do eclipse publicadas nestas páginas (veja "À sombra da Terra", nas postagens mais antigas), insistiu em vasculhar o espaço em busca do “selênico corpo celeste”, nas palavras dele, que havia sumido.

Aqui no Meia-sola temos um princípio: “o autor que autoreie”. Em outras palavras: quem sugere a pauta que faça a reportagem. É incrível como diminuiu o número de pautas furadas depois da implantação desse princípio. Também diminuíram as pautas firmes, é verdade, sobretudo depois que o pauteiro se demitiu aos brados de “eu não vou fazer todas as reportagens, não vou mesmo! Vão para a pauta que os pautou!” Que se há de fazer? Ele não entende nada de pensamento empresarial em comunicações, de engenharia de recursos humanos, de eficiência administrativa, essas coisas.

O fotógrafo protestou, dizendo que não é redator, mas cedeu ao meu argumento de que depois que inventaram a internet, todo mundo virou repórter e fotógrafo. Para que meu argumento não ficasse com cara de ameaça, lembrei a ele o princípio da pauta (“o autor que autoreie”). Um tanto amuado, com o tripé numa mão e a sacola de equipamentos no ombro, lá foi ele buscar as imagens.

Eu poderia pedir para um repórter ligar para algum astrônomo das Sebosas, as sujas folhas de telefones de fontes que percorrem a redação, de mesa em mesa. O astrônomo poderia explicar por que a lua não estava mais no céu. Preferi não fazê-lo, porém, pois não estava certo do sumiço da lua nem saberia dizer o que muda aqui na Terra sem uma lua no céu. Como eu poderia orientar o repórter?

Honestamente, a mim pouco se me dá se a lua está lá ou não. A lua já não interessa mais nem aos poetas. E aos namorados muito menos, pois hoje em dia eles têm coisas mais curiosas para olhar. As moças usam tantas tatuagens que parecem historias em quadrinhos. Outro dia vi uma gordinha com o corpo tão cheio de desenhos que me pus a pensar: se ela emagrecer, será que vai melhorar a definição, vai borrar ou vai dar moiré? Quando essas moças tatuadas envelhecerem, as histórias em quadrinhos vão ficar amarrotadas...

Lua é coisa do passado, de quando demagógicos governantes do Leste e do Oeste queriam conquistá-la. Pois conquistaram. E mudou alguma coisa? Acabou a fome do mundo? Acabaram as tragédias naturais? Curaram as hemorróidas? Ou pelo menos inventaram alguma coisa menos ridícula do que essas almofadinhas com um buraco no meio que parecem um donut gigante? Nada. Os caras foram lá, constataram que a lua estava coberta de pó, voltaram algumas vezes, pegaram umas pedrinhas, mas nem sequer levaram espanador para tirar o pó. Porcalhões, todos eles, comunistas e capitalistas. Porcalhões.

Pois bem. Algumas horas depois o profissional chega da rua, senta-se ao computador e começa a escrever laudas e mais laudas. Ou telas e mais telas. Estou omitindo o nome do fotógrafo por motivos que ficarão claros. E afinal, ele já não pertence mais aos quadros desta empresa.

Como ele ainda não tinha passado as fotos para o computador, eu não quis atrapalhar. Parecia muito concentrado no texto. Da minha mesa, ouvi quando o teclado parou e julguei que ele estivesse transferindo as fotos, para editá-las. Era hora de eu ir dar uma olhada. Ocupando toda tela do editor de imagens, havia uma mulher quase nua, com um belo corpo, em pose considerada sensual.

— Gostou, chefe? — perguntou ele.

— Gostei. Quem é a ruiva? — era ruiva natural a moça. Ou era muito detalhista na coloração.

— Ué, a Celeste!

— E quem é a Celeste?

— A mulher que tinha desaparecido. Ela tinha ido para a Argentina fazer um “trabalho fotográfico”. Olha só que trabalho — e me mostrou outras fotos da moça, que só não estava nua porque vestia uma gargantilha. Bem fininha.

— Mas que negócio é esse de moça desaparecida? — perguntei. — Você me falou que ia vasculhar o espaço em busca da lua, que havia sumido. — e comecei a ler o texto que ele havia terminado. Estava cheio de termos como cachorra, preparada, safada, popozuda, e outros ainda mais cabeludos. De cabelos ruivos. Desculpe, freguesa. Enquanto eu lia, ele se desculpava:

— Eu não tenho nada com o sumiço da lua, chefe. Eu passei o dia todo aqui, não pus a cara para fora da porta até a hora que fui procurar a Celeste, porque eu tinha uma dica de onde ela poderia estar.

— Quer dizer que aquela conversa de “selênico corpo celeste”...

— Ô chefe, olha que corpão! Não é selênico?

— Selênico? Em relação à lua ou ao selênio?

— Qual é, chefe! Selênico em relação a esse material todo! Olha só! Isso é uma sereia! — aí caiu a ficha.

— Você quer dizer sirênico, relativo a sereia?

— É silênico?

— Não, é sirênico. De sirene, sereia.

— Ahn...

Com toda a fúria de editor traído, mandei que ele voltasse à rua para fotografar a maldita lua.

— Mas chefe... a lua não sumiu?

— Calado! — exclamei. — Vá fazer a foto! — disse-lhe apontando a janela grande. Eu não queria sugerir que ele saltasse pela janela; apenas não me acostumei ainda com a nova disposição das mesas, que a mulher do feng shui disse ser mais harmônica. Ainda bem que ele entendeu e entrou no banheiro. Ou melhor, saiu pela atual porta que dá para o corredor que conduz ao elevador. Não pela que tem a coisinha pendurada, o espelhinho, porque aquela é só para entrar.

Pouco depois ele voltou com a foto e, talvez por suspeitar de minha irritação, cometeu de próprio punho o texto-legenda da foto que ilustra este texto. Como havia trabalhado na Folha, ele tinha prática em fazer legendas. Era um bom fotógrafo, sem dúvida, por isso conseguia registrar com suas lentes os momentos mais curiosos das celebridades. Lembro-me de uma foto famosa dele, na qual um ministro de estado cutucava o nariz com o indicador direito. A legenda era: “Ministro cutuca o nariz com o indicador direito.” Veja, freguesa, o texto-legenda que o maldito perpetrou para a foto acima: “A lua esteve ausente de nosso céu nesta quarta-feira, como comprova a imagem".

• PGC •

quarta-feira, 5 de março de 2008

No tubo


Só agora descobri que o grupo Alcatéia Blues tem um filme postado no YouTube. O som não está lá essas coisas, porque foi uma gravação direta, sem equipamento próprio para som. Mas dá para ter uma idéia de como a moçada brinca. Também tem uma diferença na formação, pois o baixista do filme ainda não é o Dênis, o lobinho. O link é este:

http://www.youtube.com/watch?v=0SvfQjDYHrA

Convido a freguesa a ver o vídeo e confirmar o que digo: os caras estão prontos. Agora vamos aguardar a gravação do primeiro CD, para a gente ouvir o bando na hora que quiser.

• Celso Paraguaçu •



terça-feira, 4 de março de 2008

Alcatéia bate um bolão


Em vez de ver o futebol, que é uma caixinha de surpresas, domingo eu fui ver o Alcatéia Blues, para não ter surpresas. O nome já diz de que se trata, blues. Os caras tocam blues mesmo. Melhor seria dizer os caras tocam blues e tocam mesmo. Felizmente são amadores, não fazem música por dinheiro. Tocam por esporte. O negócio deles é o prazer. E dá para se ver que gostam de fazer música de boa qualidade. A banda ainda é desconhecida, mas escreva aí o nome, freguesa: Alcatéia Blues.

Mas a freguesa não deve esperar ver o grupo na TV. Blues não é música para o chamado grande público. A televisão não mostra qualidade, mostra empreendimentos. Os pseudo-artistas que aparecem no eletrodoméstico estão lá a negócios. Estão se lixando para a qualidade do que cantam e tocam. A rapaziada da Alcatéia está mais a fim de tocar música de qualidade, e isso é para poucos. Se a freguesa quiser acompanhar a trajetória da Alcatéia, vai ter de ver as apresentações da banda. Felizmente eles têm um site (http://www.alcateiablues.com.br/), e colocam lá a agenda.

Se o bando – Alcatéia não é banda, é bando – surpreende pela qualidade musical, o local onde rolou o show não é menos surpreendente. Era um palco montado num autêntico campo de futebol de várzea, com buracos e murundus, à beira da rodovia Castello Branco. E foi um jogão. Mesmo se apresentando num campo de várzea, a equipe é de primeira divisão.

• Celso Paraguaçu •

De carona num trem de carga



Duas guitarras, gaita, baixo e bateria. Não precisa tanto para fazer um bom blues, diriam alguns. Um sujeito cantando e tocando violão dá conta do recado. Mas ouvindo a Alcatéia percebe-se que a arte dos meninos consiste exatamente em não desfigurar o blues, mesmo com uma formação mais ampla. Eles têm as manhas de explorar os recursos que excedem. Quando o trem entra no túnel... Bem, é melhor contar o filme do começo.

Dá para se imaginar uma cena de cinema: no sul dos Estados Unidos, por volta de 1930, num vagão de carga, um sujeito canta suas mágoas ao violão. Outro viajante clandestino tira do bolso uma gaita e começar a soprar, dialogando com o cantor. Um terceiro marca o ritmo no caixote em que está sentado e bate o pé no assoalho de tábuas do vagão. E se aproximam mais dois com violões. Um deles traz no dedo um gargalo de garrafa, o bottle neck. O outro faz o baixo. Pronto. Está projetada a formação da Alcatéia.

O bando toca algumas músicas desse tempo, mas não se limita ao blues tradicional. O trem em que viajam vai do delta do Mississipi para Chicago, mas tem um itinerário inusitado. Passa por São Paulo, Porto Alegre e Cabinda, em Angola. Os meninos têm algumas peças deles mesmos e de outros bons blues men nacionais, como Nei Lisboa e André Cristóvão, além do angolano Nuno Mindelis.

Meninos é força de expressão. Acho que o grupo se chama Alcatéia porque os integrantes estão na idade do lobo, ou perto disso. A idade do lobo, se a freguesa não sabe, é aquela em que o infeliz corre atrás da Chapeuzinho Vermelho, mas só come a vovozinha. Pedrinho da bateria, Rafael da gaita, o Douglas, guitarra e vocal, e o Peter, guitarra, já passaram dos 40. Talvez o Peter não tenha passado, mas está na boca da caçapa. Ele jura que só tem 33, mas parece que se não viu o dilúvio pelo menos pisou no barro. Só quem não está na idade do lobo é o Dênis, baixista. Com vinte e poucos anos, ainda é lobinho. Mas tem a pinta da fera.

O blues não é o tipo mais adequado de música para espetáculos ao ar livre. Blues em campo aberto só existiu no seu nascimento, quando era só um lamento cantado nas plantações de algodão. Os instrumentos ingressaram no blues dentro dos vagões de carga dos trens. E talvez seja a expressão musical que se mantém mais ligada a suas raízes. O blues evolui, se enriquece, se sofistica, mas ainda se identifica o balanço do trem nos boogies. Ou o ronco do outro sujeito que dorme no vagão, em cima de um monte de palha, na lenta batida do slow blues. O blues continua sendo feito assim: o ambiente propõe um ritmo, seja o andar do trem ou o ressonar compassado do companheiro, e o blues man sobrepõe a letra e a melodia.

Isso pode sugerir que a bateria e o baixo representem a base rítmica para a música que se desenha em cima. Essa é a essência, mas o bando não se limita à essência. Em algumas peças, a guitarra-base está sincronizada com a bateria e o baixo na pulsação da melodia. De repente os meninos invertem a base. O Peter, que solava dedilhando sem palheta, passa segurar forte a marcação enquanto o Douglas viaja no solo. No momento seguinte, tudo se altera outra vez: guitarras, baixo e bateria se concentram na cadência, para se ouvir ao fundo o choro lamentoso da gaita. Fechando os olhos, quase se consegue ver o trem no túnel, quando todo o ambiente se torna ritmo, enquanto o distante apito da locomotiva soa nas palhetas da gaita do Rafa.

Às vezes a gente fecha os olhos para viajar no som do blues. Quando a Alcatéia toca “Five and a half”, por exemplo, quem está de olhos fechados tem a impressão de estar vendo a garota de Ipanema de 50 anos atrás passando à sua frente. “São as dissonâncias” explica Douglas mais tarde, “na bossa nova tinha muito disso.”

Curioso imaginar o vai-e-vem da arte. O blues, pai do jazz, usando um recurso da bossa nova, filha dileta deste último. Talvez isso explique o estranho mas enriquecedor itinerário do trem da Alcatéia. Afinal, a origem do blues e do samba é a mesma, do outro lado do Atlântico.

• Celso Paraguaçu •

sábado, 1 de março de 2008

Imprensa divertida 3


Para nossa alegria, a BBC Brasil continua cometendo ótimos títulos. Veja estes, freguesa:


BBC Brasil, 29 de fevereiro, 2008 - 12h09 GMT

Tribunal italiano considera ilegal tocar partes íntimas em público

- Os italianos vão sair dos mictórios públicos de calças molhadas.



BBC Brasil, 4 de julho, 2007 - 08h55 GMT

Brasileiros estão entre os que perdem a virgindade mais cedo

- Povinho distraído! Essa moçada perde tudo!



BBC Brasil, 29 de fevereiro, 2008 - 10h57 GMT

Dente implantado em olho ajuda cego a voltar a enxergar

- Dente por olho, olho por dente. Chato é escovar o olho três vezes por dia.


BBC Brasil, 28 de fevereiro, 2008 - 09h59 GMT

Perfume reúne odores de sangue, suor, saliva e sêmen

- Parece a oferta de Churchill, mas, em vez de lágrimas, tem uma cuspida e uma gozada.



BBC Brasil, 16 de julho de 2007

Estudo americano lista '237 razões para fazer sexo'

- E ainda tem gente dizendo que é um ato irracional!



BBC Brasil, 5 de junho, 2007 - 10h34 GMT

Britânicas preferem comer chocolate a fazer sexo, diz pesquisa

- Provavelmente esse resultado reflete a prática citada no título abaixo.



BBC Brasil, 18 de maio, 2007 - 09h06 GMT

Uma em cada três britânicas 'já fez sexo no escritório'

- As outras duas trabalham em fábricas. E dizem que preferem comer chocolate.



BBC Brasil, 29 de fevereiro, 2008 - 23h52 GMT

Loja londrina ensina mulheres a fazer pedido de casamento

- Ou a escolher chocolates, conforme o local de trabalho.



BBC Brasil, 17 de abril, 2007 - 11h37 GMT

Brasileiros só ficam atrás de gregos em ranking de sexo

- Deve ser um ranking de homossexualismo. Mas causa espanto essa preferência por gregos.



quinta-feira, 28 de fevereiro de 2008

Chamem a faxineira



O fabricante do absorvente Care Free lançou um sabonete especial para lavar xoxotas. Na campanha publicitária, o locutor diz: “O sabonete Care Free limpa delicadamente sua área íntima.”

O verbo limpar já parece impróprio. Estão dizendo que a freguesa está com as partes baixas sujas? A propaganda tem usado outros termos, com os quais os ouvidos já estão acostumados, como fazer a higiene. Até lavar seria melhor. Limpar é mais adequado para as mãos dos mecânicos do que para as xoxotas das madames e patricinhas, provável público-alvo do novo produto. A menos que tenham acabado de sair da oficina.

Mas limpar a xoxota não é nada. Pior é chamá-la de “área íntima”. Área íntima? Parece que o autor do texto está saturado de fazer anúncio de apartamentos. Área social, área de festas, área de lazer. Talvez o anúncio ficasse mais atraente se a xoxota fosse tratada por área de lazer.

Se a moda pega, vai ser uma encrenca danada. Uma parte significativa do público-alvo do tal sabonete gosta de usar palavras modernas que vê na televisão. E isso pode tornar os diálogos muito pouco claros, já que se trata de um termo mais apropriado para lançamentos imobiliários. Será que o cabeleireiro vai entender quando a madame disser: “Desconfio que meu marido está trocando minha área íntima pelas dependências da empregada”? Pode ser apenas um projeto de reforma do apartamento. (GC)

terça-feira, 26 de fevereiro de 2008

Agrotóxico com olho de vidro e perna-de-pau


A Basf está divulgando um alerta contra falsificação dos venenos de uso agrícola fabricados pela empresa. Segundo o comunicado, “os defensivos falsificados oferecem sérios riscos ambientais e de saúde”. Já os legais apenas oferecem riscos ambientais e de saúde sérios.

O comunicado também diz que os custos baixos dos insumos oferecidos pelos falsificadores seduzem os produtores em momentos vulneráveis da atividade. Nem poderia ser de outra forma.

E a gente se põe a pensar: se os falsificados são mais baratos, devem ter uma proporção menor do princípio tóxico. Isso os torna menos agressivos à saúde do aplicador e do consumidor e ao ambiente.

Não se defende aqui o uso de agrotóxico falsificado. Nem o uso do produto legal. O prejuízo que as falsificações causam aos cofres da Basf é decerto muito menor que os danos causados pelos agrotóxicos da Basf ao consumidor, ao aplicador e ao ambiente.

Fica o alerta aos agricultores: veneno pirata também faz mal à saúde. (GC)

sábado, 23 de fevereiro de 2008

Birca do mato




Estranha a canonização do Frei Galvão. Pareceu um tanto apressada. Outros santos do Brasil estavam na fila havia muito mais tempo, como José de Anchieta, mas foram preteridos. Anchieta não nasceu no Brasil, ao contrário do franciscano, mas havia um punhado de beatos que brotaram desta terra e já tinham passado pela etapa da beatificação. E ainda outros com alto potencial milagreiro, como Padre Cícero Romão Batista, o Padim Ciço. Mas o papa, do alto de sua infalibilidade, escolheu Frei Galvão.

Não se descarta a hipótese de uma motivação política. É possível que o novo papa pretendesse aumentar o plantel de santos franciscanos. Há quem diga que poder no Vaticano se divide entre quatro grandes ordens religiosas: dominicanos, jesuítas, franciscanos e beneditinos. Os quadros do primeiro escalão do estado-Igreja são divididos entre as “coligações partidárias” que essas quatro ordens formam com as menores, que apóiam uma ou outra. No caso do Vaticano, o equilíbrio de poder também exige ações de cunho “espiritual” ou popular: santos com mais devotos "contam mais pontos" para as ordens às quais pertenceram.

O Cardeal Joseph Ratzinger, como era conhecido antes de ascender ao papado, era jesuíta, mas escolheu o nome de Bento 16 em homenagem ao fundador da ordem dos beneditinos. Não quis o nome de Ignacio, o de Loyola, que criou sua própria ordem. Deu o recado, com essa ação, de que em seu papado os jesuítas não teriam mais poder que as demais grandes ordens. Isso reforça seu próprio poder. Quer mostrar que não é o papa dos jesuítas, e sim de toda a Igreja. Canonizar um frei franciscano como o primeiro santo genuinamente brasileiro pode dar a entender aos líderes das ordens que o papa pretende distribuir o poder do Vaticano com certa eqüidade. Um santo nascido no Brasil pode contar muitos pontos. Trata-se, afinal, do país com a maior população soi-disant católica do mundo. Parece um bom motivo para o pedido de canonização de Frei Galvão ter passado à frente dos demais santos aqui do Brasil.

Normalmente um processo de canonização é lento, envolve muita investigação. Não pode pairar dúvida sobre a santidade do candidato a santo. Por isso a Igreja instituiu a figura do advogado do diabo. Cabe a este apresentar provas que dificultem a canonização do indivíduo em questão. No caso do Frei Galvão, porém, parece que o Vaticano, em vez de um advogado do diabo, contratou os serviços de um rábula-de-porta-de-cadeia.

O “milagre” que deu fama a Frei Galvão pode ter sido apenas uma conseqüência da ignorância de um caboclo apavorado, que buscava ajuda para sua mulher em trabalho de parto. Mas o rábula do capeta parece ter passado por cima das circunstâncias históricas e culturais que determinavam o contexto social em que o dito milagre teria ocorrido. Nos próximos parágrafos, este blogueiro, no mais nobre intuito de colaborar com a excelência do papado de Sua Santidade, veste sua capa preta até os pés para demonstrar que o milagre do santo não passou de um mal-entendido.

Dá para imaginar o que era a ignorância de um morador de São Paulo no século 18? Não havia internet, nem jornais, nem rádio, nem televisão, nada. Hoje os paulistanos são todos cultos e bem informados, lêem Caras, vêem Adriana Galisteu, Datena, Hebe Camargo, Otávio Mesquita e Big Brother, sem falar nos pastores milagreiros que invadem a televisão madrugada afora. Os paulistanos de hoje – e os brasileiros em geral – estão cobertos pelo manto da sabedoria. Mas naquele tempo não era assim. Grassava nos campos de Piratininga uma sólida ignorância e um profundo analfabetismo semilíngüe. Sim, nem se falava uma língua inteira nessa época, em São Paulo.

Era-se analfabeto, mas não em português e sim na língua geral, uma língua franca que misturava elementos do tupi e do português, com pitadas de guarani e castelhano. Daí a existência de nomes como Tietê, Tatuapé, Cangaíba, Jaraguá, Jaguaré, Anhangabaú e tantos outros topônimos. E não só topônimos. Os caipiras – e eram todos caipiras – comiam pipoca, paçoca de jabá e cambuquira, por exemplo. No português da época essas palavras não existiam. Mas na São Paulo do século 18, a língua portuguesa só existia na frustrada tentativa de comunicação dos padres com os fiéis. A língua oficial da igreja, para uso canônico e ritual, era o latim. O português entrava nas homilias e sermões que ninguém entendia. A comunicação nas casas, nas ruas e nos negócios era feita na língua geral.

Os índios entendiam a língua franca e a utilizavam para conversar com os caipiras portugueses e com os curibocas (mestiços) de São Paulo. Os caipiras e curibocas entendiam a língua franca e a usavam tanto na comunicação com os índios quanto ao conversar com seus pares. Só que os índios também falavam suas próprias línguas. Os portugueses de São Paulo, já não mais.

Geralmente casados com índias, comunicavam-se em seus lares na língua geral. As crianças só conheciam a língua geral e esta disseminou-se rapidamente. A tal ponto que o Marquês de Pombal, a mais colorida eminência parda de Portugal, proibiu o uso da língua geral em São Paulo em 1757, quando Frei Galvão tinha 18 anos.

A proibição demorou muito a pegar. Ainda hoje, se um brasileiro cutucar alguém pode levar um tapa ou um soco. Em Portugal, não se cutuca ninguém. Se houvesse a ação, a palavra seria outra, pois cutucar vem do tupi. A reação poderia ser uma bofetada ou um murro; tapa e soco também são palavras indígenas.

Analfabetos e obrigados a se aproximar da Igreja, detentora de todo o saber e representante do poder, os caipiras paulistas logo perceberam que os ministros religiosos não eram ignorantes. E não eram mesmo. Estudavam nas grandes cidades, como Rio de Janeiro e Salvador, e traziam com eles todo o conhecimento. O próprio Frei Galvão, caipira de Guaratinguetá (nome indígena), estudou nessas grandes cidades. Em latim e português. E esqueceu a longínqua e proibida língua geral dos índios, caipiras e mamelucos.

Os padres liam e escreviam. Na velha vila paulistana, raríssimos eram os que sabiam ler e escrever. Praticamente só os padres. Mais um motivo para serem considerados homens sábios. Tinham até uma língua própria para conversar com deus! Falavam com o todo-poderoso em latim e com os homens em português. Deus eu não sei, mas os paulistanos não entendiam bulhufas do que os padres falavam, acostumados que estavam com a língua geral. Deus talvez tivesse preferido o hebraico, mas não se incomodava com o latim, pois era todo-poderoso.

Pode-se imaginar o desespero que levou um sujeito absolutamente ignorante a vencer o temor e pedir a ajuda do padre, o ser mais sábio que ele conhecia:

– Frei Govão, Frei Govão! A cunhã 'tá de barriga e 'tá gritano! Vai tê um piá, Frei Govão, um curumi, mas 'tá cum dô, Frei Govão!

Curumi? Piá? Cunhã? É provável que o religioso não se tenha dado conta de que a mulher do suplicante, a cunhã, estava parindo. Sim, ela ia ter uma criança, um piá, um curumi. Informação afobada, mal pronunciada, com palavras desconhecidas. Se tivesse entendido tratar-se de um parto, o santo homem não se assustaria, porque já tinha lido isso na Bíblia. Talvez fosse difícil explicar ao roceiro, mas está lá, no primeiro livro, o Gênesis, a praga lançada a Eva na ira divina: “E tu, mulher, parirás com dor!”

Os mais observadores poderão engasgar com a expressão “ira divina”. Afinal, ira é um pecado capital, o que aparentemente compromete a harmonia da expressão. No tempo do Gênesis, contudo, ainda não existiam pecados capitais. Isso é mais moderno, invenção do catolicismo. Mas deixemos isso de lado, por ora. Não faltará oportunidade de se descer o malho nos sete grandes vícios. Voltemos ao pobre sacerdote, que está no sufoco.

Frei Galvão tem de mostrar conhecimento e segurança, dois atributos essenciais para manter a liderança sobre o povinho ignorante da vila. E tem de ajudar um tabaréu assustado, que fala uma estranha língua, mas que nada pede para si e sim para alguém que sofre. Isso comove o franciscano, naturalmente. Ele quer ajudar, mas mal entende qual é o motivo de tanta atribulação do suplicante.

Mesmo não percebendo que se tratava de um parto, compreendeu que tinha algo a ver com barriga e com dor. E então disse ao sujeito o nome do remédio, procurando tranqüilizá-lo:

– Dê-lhe um pouco de bicarbonato de sódio.

Se o problema fosse uma azia ou má digestão, a substância faria bem. Se fosse qualquer outra coisa, mal não faria. Esse negócio de medicamentos não recomendados em caso de suspeita de dengue também é novidade. Mas o caipira não estava familiarizado com a língua portuguesa. Assustado que dava dó, ficou mudo, olhando, com cara de bobo, para o sacerdote.

– Repete comigo – disse Frei Galvão com uma paciência franciscana – Bi-car-bo-na-to. Bi-car-bo-na-to de só-dio.

E o caipira:

– Birca do mato... birca do mato tifódio.

“Melhor escrever”, decidiu Frei Galvão. Procurou um pedaço de papel, mas... Papel? Numa terra de analfabetos? E longe dos centros urbanos de importância? Papel, em São Paulo, não tinha serventia. Para isso que a freguesa pensou usavam-se folhas de plantas, sabugos de milho e outros produtos naturais, descartáveis e biodegradáveis. Não há razão para se assustar com a idéia de usar um sabugo de milho para essa finalidade. O uso era apenas externo, em movimento tangencial.

O que interessa é que papel não havia. Mas Frei Galvão era homem de expediente. Como franciscano, estava acostumado a viver na mais extrema pobreza e a se arranjar com o que tivesse em mãos. Não fosse assim, como teria conseguido construir um convento no pântano que havia onde hoje é o bairro da Luz?

Frei Galvão, inteligente e cuidadosamente, rasga uma fina tira de papel da margem de uma página da bíblia que estava na mesa. Molha sua pena no tinteiro e escreve: bicarbonato de sódio. Abana a tirinha de papel até a tinta secar, dobra-a delicadamente, porque o papel era muito fino, e a entrega ao tabaréu dizendo: “Faz tua mulher tomar isso”.

O religioso imaginava que o sujeito levaria a “receita” à botica para aviar, mas o tipo era mais ignorante do que podia supor o bom frei. Saindo da igreja ainda trêmulo – não só por ter tido a coragem para pedir ajuda ao religioso, que era a expressão do poder, mas também porque levava consigo algo sagrado, rabiscado em um pedaço da bíblia – o coitado correu direto para casa, com o papelzinho firmemente seguro na mão fechada e encostada no peito.

E lá chegando, fez exatamente o que o frei lhe disse: pegou uma cuia com água e fez a mulher tomar aquilo. Teve o cuidado de dobrar mais um pouquinho a tirinha de papel, para que ficasse ainda menorzinha, mais fácil para a cunhã engolir. E ela, no desespero das dores do parto – por desconhecer a bíblia, não esperava que parir doesse tanto –, engoliu o papelzinho, enquanto o caipira recitava, cheio de fé: "Birca do mato, birca do mato tifódio". E a mulher pariu.

Pariu, porque pariria mesmo. Com papelzinho ou sem. Naquele tempo não havia obstetras; quem decidia a hora do parto era o nascituro. Não a mãe nem o papelzinho. Mas o tabaréu ficou encantado com o milagre:

– Frei Govão falô preu repeti uma reza curtinha, “birca do mato, birca do mato, tifódio”, dispois rabiscô uns vobisco tuórum num papezinho de blíbia, dei pra cunhã tomá e ela pariu! O home é um santo!

Daí até as freiras do convento passarem a fazer papeizinhos com orações e os darem para que os fiéis os ingerissem foi um passo. E São Paulo, que não tinha papel nem para remédio, passou a ter papel para remédio. Para outros fins, continuava-se usando folhas secas e sabugos de milho.

Creio que os fiéis não desembrulham os papeizinhos que hoje devem vir encapsulados em material que se degrada no estômago. Mas é pouco provável que esteja escrito, com letras redondinhas e minúsculas de freiras igualmente redondinhas e minúsculas, “Birca do mato, birca do mato, tifódio”, como no milagre original. Provavelmente hoje em dia traz alguma oração curtinha ou um verso em latim tirado de uma ladainha.

O trabalho das freiras – ou terapia ocupacional, se preferem – valeu a canonização do pobre Frei Galvão, cuja alma já não pode descansar em paz. Fosse ainda vivo, certamente estaria dizendo, com sua humildade franciscana:

– Não, não, gente, não é para engolir o papel! É para levar para o boticário aviar! Ite, missa est. Dominus vobiscum, mas não chupem a receita!

Mas talvez tivesse de dizê-lo na língua geral, porque em português ninguém iria entender. Continuam não entendendo e engolindo os papeizinhos.

Atualmente, no Brasil, quase não se fala mais a língua geral. O que se desenvolveu foi uma espécie de religião geral. A mistura de cristianismo, candomblé, astrologia e livros de auto-ajuda é o que impera. O costume de saudar o santo, por exemplo, vem do candomblé. Quando se pronuncia o nome de Obaluaiê, faz-se também a saudação ao orixá: Atotô, Obaluaiê! Com Iansã é a mesma coisa: Epa-rei, Iansã! E com os outros orixás, da mesma forma.

Pois não é que na religião geral dos brasileiros esse costume do candomblé já está pegando entre os devotos de Frei Galvão? Saúdam-no pedindo que olhe por eles, mas usando um termo da gíria do banditismo, “filmar”, que significa observar atentamente, velar, zelar. É, ao mesmo tempo, uma saudação, como no candomblé, e uma súplica, como no catolicismo. Basta ligar a televisão num dia de jogo e observar os cartazes que os fiéis de São Galvão levam para as arquibancadas, com a saudação ao novo santo, o santo brasileiro: “Filma eu, Galvão!”. Êh-êh!

• Celso Paraguaçu •

Foto: Celso Paraguaçu