quarta-feira, 30 de abril de 2008

Evangelizador fracassado




— O próximo! — gritou o centurião.
O soldado se aproxima, trazendo pelo braço um velho malvestido, como costumavam se vestir os judeus pobres daquele tempo.

— Então, judeu, você estava na catacumba?

— Não. E também não sou judeu, sou da Samaria.

— Não? Então não devia estar aqui. Isto é o interrogatório das pessoas que foram capturadas nas catacumbas na noite passada.

— Eu já estou preso há muito tempo.

O centurião nem quis saber por que o velho estava preso. Os romanos costumavam encarcerar pessoas sem dizer a razão. Provavelmente o velho também ignorava seu delito, mas sabia que se apanhava menos ficando preso sem chiar. Ademais, depois de um duro dia de interrogatórios, o centurião estava irritado. Vários de seus companheiros de farda se haviam convertido à nova religião depois de perseguir e interrogar subversivos que se reuniam em catacumbas. Estava virando moda a nova religião.

O monoteísmo era mais prático, bem ao gosto dos pragmáticos romanos. Foram eles, por exemplo, que transformaram os enrolados pergaminhos em livros. Em vez de desenrolar seis ou sete metros de pergaminho, bastava folhear até a página vinte. Eles também institucionalizaram o sistema decimal, a começar por seus exércitos, que eram divididos em centúrias – cem soldados – e estas em decúrias.

Mas na hora de fazer sacrifícios religiosos, precisavam saber qual era o deus adequado a suas intenções. Se fizessem um sacrifício para o deus errado, podiam acabar apaixonados pelo inimigo. O monoteísmo era muito mais prático. Endereçava-se o sacrifício a um único deus e este se incumbia de providenciar a ajuda mais conveniente. E vinha se disseminando a idéia de pequenos sacrifíciozinhos semanais em vez de grandes e eventuais hecatombes. Era o conceito de prestação semanal que os judeus introduziam em Roma.

Mas o centurião não queria abraçar o monoteísmo só pela moda. Precisava de uma razão mais forte. Estava disposto a ser convertido, mas não dava sorte com os interrogados. Não era a primeira vez que passava o dia fazendo perguntas aos catacumbeiros. Argumentos convincentes, porém, jamais lhe foram apresentados. Todos contavam histórias que tinham ouvido. Ninguém presenciara milagre algum, ninguém jamais tinha ouvido pessoalmente o tal Cristo, ninguém o havia conhecido. Não havia nada de sólido para alicerçar sua possível conversão ao monoteísmo. Além disso, estava cansado e queria ir embora logo.

— Soldado! Leve este homem daqui. E traga o próximo que estava nas catacumbas!

— Ele é o último. O decurião mandou que eu o trouxesse. Disse que deveria lhe interessar.

— Leve-o de volta. Estou aqui para interrogar os subversivos das catacumbas. Este velho não estava entre eles.

— Mas centurião, não posso levá-lo antes que o senhor fale com ele. Foi o que disse o decurião.

— Ninguém pode servir a dois senhores. — comentou o velho em voz baixa.

— Hein? — perguntou o centurião.

— Ele disse que ninguém pode...

— Calado, soldado!

— ... servir a dois senhores.

— Foi isso, velho?

— Sim. O moço disse isso uma vez. O respeito à hierarquia é um bom princípio de administração. E o respeito tem de se dar de cima para baixo também. Nem mesmo o chefe da guarda do palácio pode dar uma ordem a um escravo de César. O escravo de César só deve obediência a César.

— Esse moço de que você fala era romano? Um soldado?

— Ah, não, era um civil, nascido em Belém, na Judéia. Boa pessoa. Fazia cada uma!

— E se chamava Jesus?

— Esse mesmo, filho de José, o carpinteiro. Conhece?

— Então você é um desses que se reúnem nas catacumbas!

— Não, eu sou só um prisioneiro. Aqueles caras que freqüentam as catacumbas se dizem seguidores das idéias de Jesus, que eles chamam o Nazareno, mas nem o conheceram.

— E você o conheceu, suponho... — ironizou o centurião.

— Sim, nos bons tempos.

— Bons tempos?

— É, eu era jovem. Foi em Caná, ele ainda não era um líder das massas. Estava com a mãe, Dona Maria, os irmãos e alguns amigos. Era um sujeito divertido. Estávamos num casamento, bela festa, mas com mais convidados do que vinho. Quando o vinho acabou, a mãe do moço foi falar com ele. Pois acredita que ele transformou água em vinho? Água em vinho! Fiquei pasmo! E era vinho bom, muito bom. Posso dizer porque conheço um pouco de vinhos e bebi daquele. Muito bom mesmo.

— Você diria que presenciou um milagre?

— Não, era vinho mesmo! Muito bom. Quando a festa acabou, o moço foi para Cafarnaum, com a mãe, os irmãos e os amigos. Eu fui atrás. Os judeus não gostam que os samaritas andem com eles, então eu ia a uma certa distância. E comecei a seguir a turma dele. Queria estar por perto quando ele fizesse aquilo de novo, transformar água em vinho. Eu não era apóstolo, como ele chamava os mais chegados, nem era discípulo. Só andava por perto. Sempre tinha muita gente em volta dele, buscando cura para cegueira, aleijões, lepra, possessões demoníacas. Ele curava tudo isso sem receitar um chazinho, uma erva, nada. Simplesmente dizia: “Está curado”, assim como quem acaba de consertar uma sandália ou costurar uma roupa rasgada. Ou então: “Tua fé te curou”. E os aleijados saíam andando, os cegos começavam a ver, os leprosos saravam, até mortos ressuscitavam. Ia juntando cada vez mais gente, mas ele foi perdendo a alegria, foi ficando muito sério, só falava de fé, de reino de Deus, essas coisas. Ainda continuei andando atrás da turma durante um bom tempo. Mas o moço perdeu a alegria e eu parei de acompanhá-los.

— E você viu tantos milagres, ouviu as palavras de Jesus e não se converteu a essa nova religião?

— Olha, para falar a verdade não dava para ouvir direito não. Geralmente quando ele começava a falar para a multidão tinha muito barulho. Havia muitas crianças, rindo e gritando, cabras e ovelhas berrando, cachorros latindo, mães e pastores ralhando, gente chorando, outros clamando para que o moço os ajudasse. A gente não conseguia ouvir praticamente nada do que ele falava. E eu achava essas grandes reuniões muito chatas, então me afastava e ficava olhando de longe. Só voltava para perto da turma quando a massa tinha ido embora.

— Mas viu muitos milagres, não viu?

— Se você quer chamar de milagres, vi sim, inúmeros.

— E não ficou impressionado?

— É, o moço era bom mesmo. O que ele curava de gente estragada não era mole. Mas o que eu gostava mais era quando ele fazia o vento parar de soprar, o céu ficar claro em plena tempestade, ou quando alimentava multidões com uma cesta de pães e uns poucos peixes. Mas ele foi ficando triste... Dever ter sido excesso de trabalho. E eu acabei me afastando.

— Só porque ele ficou triste?

— É. Durante mais de dois anos eu andei atrás da turma. Ele esteve com os amigos no mar da Galiléia, no rio Jordão, e eu por perto, com minha canequinha presa no cinto. Estava preparado para o dia em que ele transformasse água em vinho outra vez. Não faltou oportunidade. Quando comecei a desconfiar que ele nunca mais faria isso, caí fora.

— Soldado! Leve este pau-d’água de volta para a prisão!


Celso Paraguaçu



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