sexta-feira, 21 de março de 2008

A falta da cabrita



— Eu não gosto de médico.

— Eu sei, mas é só um checape.

— Fiz um no ano passado e ’tava tudo bem. Isso é igual carteira de motorista, só tem de renovar de cinco em cinco anos.

— Mas não é para ver o coração, é outra coisa... Sua cabeça. Não está muito bem e pode ser o mal de Alzheimer.

— Você está delirando! Eu nunca escapei marcha!

— É, mas ontem, quando eu falava com a Ana Cláudia, você veio com uma conversa totalmente sem propósito. Pode ser um sinal do mal de Alzheimer e é bom ver isso logo, pois se pegar no começo o tratamento funciona.

— Conversa sem propósito? Vocês duas nem me deixam abrir a boca quando estão de prosa!

— É conversa de mulher, você não entende.

— O que vocês conversam de nível tão alto que eu não consigo entender?

— Muitas coisas. Ontem, por exemplo, estávamos falando de sinais; dos sinais que aparecem na vida da gente e nem sempre se sabe interpretar. Ela acredita nos sinais, mas acha que são as forças do universo que os põem à nossa vista. Eu acho que é Deus. A Lúcia tem certeza de que são os astros.

— A Lúcia não vale. Ela é pirada.

— Não é não. Ela é astróloga. E muito boa. Você devia respeitar mais sua filha.

— Eu respeito. Mas acho que ela é piradinha. Veja a Ana Cláudia: ainda é quase uma menina, mas tem a cabeça no lugar, sabe o que quer da vida...

— E vai se casar.

— Então... Quem? Quem vai se casar, a Aninha? Você está louca?

— Vai para a Alemanha e vai se casar.

— Mas como? É uma menina!

— Tem a idade que eu tinha quando nos casamos. E já é mais velha do que a Lúcia era quando se casou.

— Mas a Lúcia é uma pirada.

— Não é pirada não. É socióloga, competente, famosa, doutora. E também é astróloga, porque nós, mulheres, somos múltiplas. Você mesmo não diz que a lasanha da Lúcia é imbatível? E você acha que ela aprendeu a fazer lasanha na Sociologia ou na Astrologia? Não; é porque ela é mulher, é múltipla. É profissional, é mãe, é artista, é astróloga, é motorista, é dona-de-casa, é professora, é pesquisadora, é múltipla.

— Mas a Aninha vai se casar mesmo?

— É, ela conheceu um rapaz na universidade, um bolsista da Alemanha, e acha que identificou alguns sinas de que ele é o homem da vida dela.

— E por causa dos sinais, vai se casar.

— É. Vai terminar a universidade, vai se casar, fazer mestrado na Alemanha. Como você disse, ela sabe o que quer da vida.

— Ah! Eu pensei que ela ia se casar logo. Mas se vai esperar o fim do curso, vai ter de concorrer a uma bolsa de mestrado... ainda demora. E acaba nem se casando com o alemão. As moças são assim, se apaixonam, se desapaixonam... Coisas da juventude.

— Pode ser. Mas acho que desta vez é pra valer. Ela está muito impressionada com os sinais que diz serem uma expressão das forças do universo.

— Isso é influência da pirada da Lúcia! Aposto que ela fez o mapa astral do rapaz e disse que ele combina com a Aninha.

— Não é não. Eu não sei que sinais são esses que ela diz ter identificado, mas ela ainda nem falou com a mãe. Veio conversar comigo ontem porque sabe da nossa história, que a Lúcia contou para ela.

— Que história?

— Eu nunca lhe falei, mas quando vi você pela primeira vez, sabia que viveria com você até o fim de meus dias. Eu tinha recebido um sinal.

— De Deus?

— Eu acho que foi. E quero pensar que foi. A Lúcia acha que foram os astros e a Ana Cláudia diz que são as forças do universo. Mas eu prefiro pensar que foi Deus.

— E Deus disse que você ia casar comigo?

— Não é assim que a coisa funciona, Aurélio. Vocês, homens, são tão simplistas, tão infantis que chegam a irritar. Você acha que Deus chegou para Moisés e falou: “Anota aí, meu filho, os dez mandamentos da minha lei.” Não é assim. A gente tem de sentir que uma coisa é um sinal, tem de interpretar a manifestação divina. Não é tudo claro e simples. Bem, no caso do Moisés acho que foi, sim, porque ele era homem. Se os sinais fossem mais complexos talvez ele não entendesse.

— Vocês mulheres têm uma implicância com o raciocínio masculino...

— ’Tá, ’tá, deixa o Moisés para lá. Mas foi por isso que eu nunca lhe falei do sinal. Porque achava que você não entenderia. Com as meninas é diferente. Eu contei para a Lúcia quando ela era mocinha e ela contou para a Aninha. Elas entendem isso. Por isso é que gostam tanto de você. Elas sabem que estamos destinados a viver juntos até a morte.

— Mas que sinal foi esse?

— Eu não vou contar, porque você não ia entender e podia até ficar fazendo piada com algo que eu acho que é sagrado. É só para mim.

— E para a Lúcia, e para a Aninha...

— Para elas, sim; porque a felicidade delas pode depender disso, de interpretar corretamente um sinal, como eu fiz.

— Mas quando foi que você viu esse sinal?

— Ah, foi um instante antes de a gente se ver pela primeira vez. Eu levei um tremendo susto, mas depois senti que aquilo era um sinal.

— Você está falando daquela vez que a gente se encontrou naquele bar em que todo mundo ia, como chamava mesmo?

— O “Amarelo”. Mas foi antes. Quando a gente se cruzou no Amarelo eu já sabia que você era o homem da minha vida. O sinal foi antes, da primeira vez que a gente se viu, naquela estrada, quando meu carro saiu da curva e você veio me socorrer. Não se lembra?

— Lembro, você estava muito assustada, e como era bonita! Dizia que a curva da estrada estava cercada de caixões de defuntos, quase não conseguia respirar. Aí eu lhe dei um pouco de água, você se acalmou e foi embora. E na noite seguinte nos encontramos no Amarelo.

— É, e eu fiquei falando de mim o tempo todo. Duas semanas mais tarde, quando você disse que estava trabalhando temporariamente numa funerária, eu tive certeza absoluta de que minha interpretação do sinal estava correta. Era isso mesmo, você era o homem da minha vida.

— Mas e o sinal?

— 'Tá vendo? Eu falei dele e você nem percebeu. O sinal foi a curva cercada de caixões. Onde se poderia ver uma curva de estrada toda murada com caixões de defunto? Claro que eu me assustei. Era noite alta, eu sozinha numa estrada sem movimento algum, com medo de ficar com sono, e quando entro na curva vejo uma muralha de caixões de defunto, como não me assustaria? Mas depois que me acalmei e voltei para a estrada, compreendi que não havia caixão nenhum, que aquilo tinha sido um sinal de que estava próximo o instante de encontrar o homem com quem eu viveria até a morte. E encontrei você, que foi me socorrer. Não acha que foi um sinal?

— ...

— Não acha que foi um sinal?

— É, acho que sim, não sei. Pode ter sido. Eu não entendo dessas coisas. Bem, se você achou que era, então devia ser mesmo, né?

— Mas você não vai fazer piada com isso, vai?

— Não, claro que não. Eu respeito suas maluq... suas idéias. Se você acha que foi um sinal, então foi, pronto. Um sinal divino. E não se fala mais nisso.

— Eu estava contando essa história ontem para a Ana Cláudia. Ela já a tinha ouvido da mãe, mas quis ouvir de mim, para conferir cada ponto. Foi quando você interrompeu para falar alguma coisa sobre uma cabrita, por isso acho que você precisa ir ao médico, para ver se não precisa de tratamento.

— Ah, não! — disse Aurélio sorrindo. — É que tinha me lembrado de uma história e ia começar a contar a ela, nem tinha percebido que você estavam conversando sério. E a história era uma bobeira, acho que ela nem ia gostar. Coisa muito infantil. Não preciso de médico não.

E não precisava mesmo. Aurélio se lembrava perfeitamente de tudo que acontecera na véspera. Sua intervenção pouco clara fora: “Faltou uma cabrita”. As mulheres não entenderam e ninguém entenderia mesmo. Mas Aurélio estava seguro de que tinha faltado uma cabrita.

A cena toda jamais saiu de sua cabeça. Só não contara para a mulher porque não queria ser acusado de quase tê-la matado de susto. E quem sabe se não foi mesmo o destino quem armou tudo? O destino, as forças do universo, os astros, Deus, sabe-se lá. Mas, quem quer que tenha sido, contou com a pequena ajuda do Samuel, que não sabia fazer uma cabrita.

Samuel trabalhava na marcenaria que fabricava urnas funerárias. Aurélio viera buscar uma carga para a funerária na qual trabalhava, mas não queria carregar o caminhão. Ele era motorista, carregador não. Deixou o caminhão parado na fábrica e foi jantar no Garrote de Ouro, enquanto Samuel e os companheiros faziam a carga caprichosamente.

A noite clara de lua dava uma boa garantia de que não vinha chuva. Não precisariam cobrir a carga com a lona. Caixões empilhados, encaixados, seguros, restava apenas amarrar a carga. E aí estava o busílis. Samuel era bom carregador, mas não sabia amarrar a carga. Passava a corda nas posições mais recomendadas, mas na hora de apertar a amarração, Samuel era um fracasso. Por nada deste mundo era capaz de fazer uma cabrita. E morria de vergonha disso.

A cabrita é um recurso usado pelos caminhoneiros para apertar a amarração das cargas. Se descerem com a corda e simplesmente a amarrarem num gancho da carroceria, a carga se movimenta no primeiro buraco e a corda se afrouxa. Por isso é preciso apertar a amarração com a cabrita. Faz-se um olho – ou uma orelha, depende de quem faz – a meia altura entre o alto da carga e o gancho, passa-se a corda pelo gancho e sobe-se novamente para o olho. Ou orelha. Ao ser passada pelo olho, a corda forma um laço e pode ser esticada ao extremo. O amarrador pode usar o peso do corpo para esticá-la. Aí sim a corda pode ser amarrada no gancho. Mas Samuel não sabia fazer a cabrita.

Por isso se afastou discretamente quando viu Aurélio chegando, com um palito na boca e acariciando a barriga satisfeito. O motorista pegou a nota fiscal, entrou no caminhão e partiu sem conferir a amarração da carga. As lombadas e valetas da cidade foram suficientes para afrouxar a corda . Aí foi só entrar na rodovia e, na primeira curva, ver os caixões deslizarem pela tangente e se espalharem no acostamento.

Felizmente havia um barranco, no qual os caixões que rolavam pararam. Ao ver a confusão, Aurélio entendeu que, mesmo depois de um lauto jantar, teria de assumir a função de carregador de caminhão. Ia suar um bocado, só porque o Samuel não tinha feito a cabrita. A corda era testemunha de que não fora feita uma cabrita.

Parou o caminhão mais à frente, bem depois da curva, e voltou para recolher os caixões. A melhor estratégia era juntá-los e depois aproximar-se com o caminhão. E só havia uma forma de reunir todas as urnas: apoiá-las no barranco, já que o acostamento era estreito. Assim Aurélio foi revestindo a parede do barranco com as urnas colocadas em pé, lado a lado.

Ao se afastar para pegar o caixão mais distante, percebeu, pelos faróis, que algum motorista se perdera na curva. A luzes iam para cá, para lá, até que o carro saiu da pista e entrou no pasto. Passou pertinho dele. Quando o fusquinha parou – sim, era um fusquinha, o que vocês queriam? – ele foi ver se o motorista precisava de ajuda e encontrou aquele lindo par de olhos, muito arregalados.

A moça, pálida de susto, gaguejando, arfando, dizia que tinha visto uma muralha de caixões de defunto ao lado da curva. Ele pediu que ela esperasse um pouquinho, enquanto ia buscar água no caminhão. Quando chegou com a água, a moça já estava bem mais calma. Ela bebeu um pouquinho, agradeceu, sorriu – e que sorriso! – e disse ter tido a impressão de que havia uma muralha de caixões de defunto cercando a curva.

Aurélio baixou a cabeça, com o peso da culpa, mas nem precisou se desculpar, porque a moça repetiu que devia ter sido impressão. Melhor assim. Não precisava explicar nada. Ele sabia que não era impressão, era realidade. E sabia que tudo aconteceu por falta de uma cabrita.

Pode ter sido um sinal. Se ela preferia pensar assim, tudo bem. Mas ele sabia, sabe, e levará o segredo para a tumba: sinal ou não, faltou uma cabrita.

[Não avisei antes, como faz o cinema americano de televisão, porque funciona como um alerta para mudar de canal. Mas a verdade é que este "causo" é baseado numa história real.]

Celso Paraguaçu

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