terça-feira, 4 de março de 2008

De carona num trem de carga



Duas guitarras, gaita, baixo e bateria. Não precisa tanto para fazer um bom blues, diriam alguns. Um sujeito cantando e tocando violão dá conta do recado. Mas ouvindo a Alcatéia percebe-se que a arte dos meninos consiste exatamente em não desfigurar o blues, mesmo com uma formação mais ampla. Eles têm as manhas de explorar os recursos que excedem. Quando o trem entra no túnel... Bem, é melhor contar o filme do começo.

Dá para se imaginar uma cena de cinema: no sul dos Estados Unidos, por volta de 1930, num vagão de carga, um sujeito canta suas mágoas ao violão. Outro viajante clandestino tira do bolso uma gaita e começar a soprar, dialogando com o cantor. Um terceiro marca o ritmo no caixote em que está sentado e bate o pé no assoalho de tábuas do vagão. E se aproximam mais dois com violões. Um deles traz no dedo um gargalo de garrafa, o bottle neck. O outro faz o baixo. Pronto. Está projetada a formação da Alcatéia.

O bando toca algumas músicas desse tempo, mas não se limita ao blues tradicional. O trem em que viajam vai do delta do Mississipi para Chicago, mas tem um itinerário inusitado. Passa por São Paulo, Porto Alegre e Cabinda, em Angola. Os meninos têm algumas peças deles mesmos e de outros bons blues men nacionais, como Nei Lisboa e André Cristóvão, além do angolano Nuno Mindelis.

Meninos é força de expressão. Acho que o grupo se chama Alcatéia porque os integrantes estão na idade do lobo, ou perto disso. A idade do lobo, se a freguesa não sabe, é aquela em que o infeliz corre atrás da Chapeuzinho Vermelho, mas só come a vovozinha. Pedrinho da bateria, Rafael da gaita, o Douglas, guitarra e vocal, e o Peter, guitarra, já passaram dos 40. Talvez o Peter não tenha passado, mas está na boca da caçapa. Ele jura que só tem 33, mas parece que se não viu o dilúvio pelo menos pisou no barro. Só quem não está na idade do lobo é o Dênis, baixista. Com vinte e poucos anos, ainda é lobinho. Mas tem a pinta da fera.

O blues não é o tipo mais adequado de música para espetáculos ao ar livre. Blues em campo aberto só existiu no seu nascimento, quando era só um lamento cantado nas plantações de algodão. Os instrumentos ingressaram no blues dentro dos vagões de carga dos trens. E talvez seja a expressão musical que se mantém mais ligada a suas raízes. O blues evolui, se enriquece, se sofistica, mas ainda se identifica o balanço do trem nos boogies. Ou o ronco do outro sujeito que dorme no vagão, em cima de um monte de palha, na lenta batida do slow blues. O blues continua sendo feito assim: o ambiente propõe um ritmo, seja o andar do trem ou o ressonar compassado do companheiro, e o blues man sobrepõe a letra e a melodia.

Isso pode sugerir que a bateria e o baixo representem a base rítmica para a música que se desenha em cima. Essa é a essência, mas o bando não se limita à essência. Em algumas peças, a guitarra-base está sincronizada com a bateria e o baixo na pulsação da melodia. De repente os meninos invertem a base. O Peter, que solava dedilhando sem palheta, passa segurar forte a marcação enquanto o Douglas viaja no solo. No momento seguinte, tudo se altera outra vez: guitarras, baixo e bateria se concentram na cadência, para se ouvir ao fundo o choro lamentoso da gaita. Fechando os olhos, quase se consegue ver o trem no túnel, quando todo o ambiente se torna ritmo, enquanto o distante apito da locomotiva soa nas palhetas da gaita do Rafa.

Às vezes a gente fecha os olhos para viajar no som do blues. Quando a Alcatéia toca “Five and a half”, por exemplo, quem está de olhos fechados tem a impressão de estar vendo a garota de Ipanema de 50 anos atrás passando à sua frente. “São as dissonâncias” explica Douglas mais tarde, “na bossa nova tinha muito disso.”

Curioso imaginar o vai-e-vem da arte. O blues, pai do jazz, usando um recurso da bossa nova, filha dileta deste último. Talvez isso explique o estranho mas enriquecedor itinerário do trem da Alcatéia. Afinal, a origem do blues e do samba é a mesma, do outro lado do Atlântico.

• Celso Paraguaçu •

Um comentário:

DouglasBlues disse...

Grande Parágua! Estou utilizando este espaço para comentários pq estou sem comentários... just no coments baby!