quarta-feira, 11 de dezembro de 2024

 

"De graça, até injeção estragada"


Nosso querido Nivaldo Manzano mandou duas dicas de leitura gratuita de boa qualidade em formato PDF. E não se trata de injeção estragada, freguesa. São obras essenciais para uma sólida formação intelectual, algo que não tenho, mas dou todo apoio e incentivo a quem a busca.

A primeira é de uma boa tradução do manjado "18 Brumário de Luís Bonaparte". O tradutor é Nélson Jahr Garcia, respeitado sociólogo, professor e escritor. A freguesa pode, e deve, baixar o Dezoitão e ler inteirinho, porque não vai se tornar comunista por isso. E pode ficar sossegada, que a obra não está no Index Librorum Proibitorum. Pode ser lido por fiéis de qualquer religião, inclusive de nenhuma, sem risco de arder nas chamas do inferno. Talvez depois de ler a freguesa consiga explicar por que o título fala em 18 Brumário e não em 18 do Brumário. O livro está disponível em


https://files.cercomp.ufg.br/weby/up/4/o/brumario.pdf


A outra dica do Nivaldo é "A literatura e a revolução da linguagem", de George Steiner. Se a freguesa curte literatura ou pensa em fazer revoluções com a língua, precisa ler esse livro, que o Nivaldo diz ser indispensável. Permita-me lembrar que "três pratos de trigo para três tigres tristes" é um trava-língua, não uma revolução. A revolução com a língua, a freguesa faz quando... Bem, este não é o lugar apropriado para explicar essas coisas. É melhor a freguesa ler o livro, que pode ser encontrado em


https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/236253/mod_resource/content/2/Extraterritorial%20-%20A%20Literatura%20e%20a%20Revolu%C3%A7%C3%A3o%20da%20Linguagem.pdf


PGC


sábado, 11 de maio de 2013

Manias de criador




Olha aí, freguesa. Vai mais uma do mestre Douglas, para o deleite de V. Sa.:

Acho que as escrituras sagradas escondem algumas informações. Por exemplo, que existiu mais um dia nos trabalhos do Senhor. Foi o oitavo dia. Ou o verdadeiro sétimo dia. Sei lá…
Nesse dia, após merecido descanso, Deus criou uma das coisas mais maravilhosas deste mundo. O queijo provolone.
Ontem à noite foi uma dessas noites em que a tal "janta" não lhe apetece. Então me acompanharam na refeição noturna um pãozinho fresquinho, um salame italiano, uma Red Ale e, enfim, o provolone. Ele. O cara!
É interessante. Detesto leite. Quer ver eu correr para o banheiro que nem mulher grávida é só eu inalar aquele vapor horroroso de leite fervendo. Mas adoro queijo. Praticamente todos. E dentre eles o rei. O todo poderoso… provolone.
Deus, como todo criador, tinha muitas manias. E uma delas era que, para fluir melhor o seu processo criativo, deveria entregar todas as suas obras em seis dias. Para evitar ficar "firulando" em cima do que já estava legal. E eram sempre assim os projetos de Deus. O pessoal do atendimento adorava isso.
E ocorreu então que Deus criou o provolone depois de seu descanso. E viu que era bom. Bom pra caramba, por sinal. E então lhe veio aquela frustração. Todas as pessoas que trabalham com criação conhecem esse sentimento. Já tinha entregado o trabalho. Isso mesmo. O motoboy já tinha passado e levado o CD. A nota fiscal já tinha sido emitida. Enfim, o trabalho tinha sido entregue dentro do combinado. Os seis dias.
Deus pensou angustiado que se ele não tivesse essa mania tão metódica de fazer as coisas tinha dado tempo de incluir o provolone.
Que história é essa de descansar no sétimo dia? Só mais uma mania dentre tantas que ele tinha.
Então Deus foi falar com o cliente. Tentar incluir o provolone no projeto. O cliente, a princípio, foi contra. Disse que estava ótimo o trabalho daquela forma. Que ele já tinha, inclusive, utilizado na comunicação de marketing, o fato de toda aquela maravilha ter sido criada em seis dias. Não dava para mexer mais.
Mas Deus foi tão veemente na descrição das qualidades do tal queijo que o cliente aceitou. Até porque, pelo mesmo preço que pagou pelo serviço, ele conseguiu mais esse valioso item.
E ontem à noite, com o pedaço do queijo espetado numa faca e um copo de cerveja na mão, cheguei à conclusão que só pode ser por isso que a segunda-feira é tão chata e o queijo provolone tem esse puta preço absurdo.
Douglas

sexta-feira, 10 de maio de 2013

Boa lembrança de um sonho ruim



Acho que vou dar sociedade ao Douglas neste Meia-sola. Ele tem comparecido nestas páginas com muito mais frequência do que eu. Vamos a mais uma crônica dele.

Lá pelos meus 12 anos, na esquina da minha casa tinha uma padaria. Era a padaria do seu Manoel.
Seu Manoel, nem precisava dizer, era português. E além ser português, ser dono de padaria e se chamar Manoel, tinha um sotaque lascado e era uma das pessoas mais rabugentas e ranzinzas que conheci na minha vida. A molecada morria de medo dele, porque ele vivia gritando com seus funcionários, que sempre aceitavam a bronca de cabeça baixa e pareciam ter medo dele. Então a gente também tinha.
Um dia encontrei meu irmão, dois anos mais novo que eu, chegando ao portão de casa com um sonho de padaria na mão e uma cara esquisita.
Perguntei o que havia acontecido e ele me disse que tinha comprado o sonho lá no seu Manoel, mas que o sonho estava estragado.
Não tinha como não acreditar nele, porque moleque come qualquer coisa sem titubear, e com meu irmão não era diferente. Mas ao pegar o sonho já vi que estava ruim mesmo. E o gosto? Eca! Mais azedo que seu Manoel.
O que fazer agora? Meus instintos de irmão mais velho estavam aflorando e eu sentia que deveria cobrar a bronca. Mas era seu Manoel, caramba!
Me enchi de coragem, peguei o saquinho de papel com o sonho estragado e fomos para a temida esquina. Juro que, atravessando a rua e já avistando a figura do português com seu jaleco e gorro bibico azul claro lá dentro da padaria, ainda pensei se o problema não poderia ser resolvido uma outra hora. Talvez voltasse mais tarde com mais umas cem pessoas e meu cão pastor, o Duque. Mas não havia mais tempo. Já estava dentro da padaria, diante do balcão e escutei a doce voz do seu Manoel.
– Que que é menino? Perguntou o portuga.
– Ó seu Manoel, meu irmão comprou esse sonho aqui mas está estragado. – Disse com uma cara bem seria. Se é que existe esse tipo de cara na minha cara.
– Estragado?
– É estragado, tá azedo. – Respondi, já achando que o dialogo de negociação ia bem pra caramba.
– Deixa eu ver. Dá ele aqui.
Entreguei o produto pro seu Manuel e ele o cutucou com aquele dedo que já deveria ter coçado de tudo quanto é coisa nesse mundo. Cheirou o dedo e experimentou com a ponta da língua.
– Ah, que estragado que nada, o pá. Isso é o gosto do limão. Rosnou o português com a mão esticada me devolvendo o sonho.
– Que isso seu Manoel? Tá estragado sim, eu respondi. E essa cor verde no creme, é do limão também?
– Vá, vá, vá, vá… Tá estragado nada. Deixa de besteira moleque. E se não quer mais nada, vamos saindo, vamos! Ordenou o seu Manuel, encerrando o caso.
Ah, meu Deus! O gosto da derrota... Estava mais angustiado que um goleiro na hora do gol, como dizia na época, uma música do Belchior.
Fomos saindo da padaria levando a tristeza e nosso sonho estragado embora. Aquilo não poderia ficar assim! Meus sentimentos de irmão mais velho e responsável foram aflorando mais e mais, junto com minha raiva. Uma raiva de toda maldita coroa portuguesa que deveria ter sido massacrada impiedosamente por Napoleão Bonaparte. Aqueles pensamentos foram girando e girando na minha cabeça, até que, numa girada digna de um lançador de beisebol, eu virei para trás e arremessei o sonho com toda força na direção do balcão.
O sonho começou o seu lindo voo parabólico, ganhando força feito um cometa e se espatifou na parede, atrás do seu Manoel, após passar a um palmo da famigerada caneta presa na sua orelha.
Logo após o barulho fofo do sonho batendo na parede, e com seu Manoel ainda com seus olhos arregalados de susto, ouviu-se o brado retumbante: “Limão o seu cu, português do caralho!”
E corremos, e corremos. Eu e meu irmão corremos muito. É impressionante como moleque consegue correr muito e rir muito ao mesmo tempo sem tropeçar.
Não me lembro muito bem agora, mas creio que aquela esquina foi evitada por uns meses até tudo se dissipar na rotina daqueles dias.
Há pouco tempo eu passei em frente ao prédio da velha padaria, que está totalmente deteriorado. E quem passava na rua não entendia bem o que aquela pessoa fazia ali em frente. Indo até o meio da rua e voltando pra calçada. Virando e olhando. Medindo e rindo.
Não imaginavam que eu rememorava com uma espécie de alegria besta e saudosista, a minha pontaria, o lindo voo do sonho, o eco dos palavrões e as risadas.

That's all folks, Douglas

quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

Ilustre ilustrador










As ilustrações aí de cima são do Douglas. O cara é craque. E não pense a freguesa que ele só faz isso na vida. Ele também faz Pum.
• Celso Paraguaçu •

O Pum do Douglas

Está enganado quem pensa que o Douglas só desenha, toca blues e MPB, conversa, bebe e webmastereia. Ele também escreve, como Guy de Maupassant, Edgar Alan Poe e o mais lucrativo discípulo deste, Stephen King. Aí vai um conto do Douglas, “Pum”:

Abriu os olhos de repente e olhou para o relógio. Ainda é cedo, pensou. Dá para dormir mais um pouco. Sentia uma enorme vontade de peidar. Olhou para o lado. Viu a esposa dormindo. Ela já vinha reclamando há algum tempo dessa desagradável flatulência. Já tinha até tirado sarro dele na frente das amigas por conta desse flato, ou melhor, fato. Estava começando a pegar pesado.
Não deu pra aguentar. Um peidinho só não faria mal. Fechou os olhos e abriu os pensamentos. Haaa! Não foi tão peidinho assim mas foi silencioso pelo menos. Porém, a vontade não passou.
Começou então uma estratégia para um segundo peido mas o novo flato se adiantou involuntariamente. Começou fraquinho e foi aumentando.
Ele deu um pulo da cama e correu para o banheiro. De forma inexplicável o peido não queria parar. Não fazia o tradicional barulho de bufa e nem tinha cheiro. Só que não parava mais.
Que coisa mais esquisita isso. O que estaria acontecendo? Só poderia estar sonhando, ou melhor, tendo um pesadelo. O peido continuava.
O que fazer? Nem pensar em acordar a mulher ou a filha. Aquilo era desconcertante. O peido não parava mais.
Precisava fazer alguma coisa. Ir a um pronto-socorro, hospital, igreja, sabe-se lá o que. Vestiu um roupão, pegou as chaves do carro e saiu correndo do apartamento. Resolveu descer pela escada. O "flatídico" vento não parava de sair. Somente era cortado pelo movimento de descer ou degraus.
Abriu o carro desesperado, se jogou no banco e fechou a porta. Aonde ir? Ficou pensando com olhos arregalados. Todos os três.
Batucava aflitamente no volante enquanto aquele peido eterno continuava. Foi quando percebeu algo mais estranho. O volante havia crescido. Estava bem maior. O roupão que vestia estava maior. Ou ele estaria menor? O que? Parece que estou diminuindo… Pensou.
Sim, ele estava diminuindo. Já não conseguia mais ver o capô do carro. Estava mais baixo que o volante, e continuava a diminuir rapidamente. Seus pés já não tocavam o chão. Percebeu que estava minúsculo. Parecia um boneco de brinquedo sobre o banco do carro.
Pulou do banco e se pendurou no trinco da porta, o que fez a mesma se abrir. Ficou dependurado um tempo mas suas mãos já estavam pequenas demais para conseguir segurar o trinco. Caiu.
Caiu mas não chegou tocar o chão. Simplesmente não tocou em mais nada sólido. Dissipou-se.
No apartamento, Paulinha entrou na cozinha. A mãe punha o café na mesa. Cadê o pai, mãe? Perguntou. Deve ter saído bem cedinho hoje, disse a mãe, nem quis tomar café. Acho que os cereais não estão fazendo bem para ele.

• Douglas •

quarta-feira, 10 de agosto de 2011

Peba na pimenta


Olhe, pois eu nem tinha começado a cantar, só disse o nome do coco, “Peba na Pimenta”, e um desinfeliz lascou lá do fundo:

— Que que é peba?

Cabra afobado, xente! Nem esperou para ver se aprendia escutando o coco. Só falei o nome, e o abestado já estalou a preaca: “Que que é peba?”.

O cabra tinha esprito ruim, não nasceu no Sertão. Não estou dizendo que todo mundo que nasce no Sertão tem esprito bom. Já nasceu muita gente ruim lá, dos mais piores. Foi. Mas se o cabra tem o esprito bom, ele merece nascer no Sertão.

Esse um, ou tinha esprito ruim ou estava procurando encrenca. Mas eu sou velhaco. Pego no rabo da pergunta, como se fosse uma coisa séria, boto ela no chão e passo a peia. Resolvi explicar para o cabra até ele ficar cansado de entender. E fui:

“Quem nasce no Sertão sabe muito bem sabido o que é peba. Sabe que peba é bicho sertanejo. No sertão tem gente, bicho, planta e pedra. Também tem água, às vezes, mas é pouca. Quando tem, a gente prende no açude.

“Pedra, todo mundo conhece só de ver. Não precisa perguntar o nome. Tem das grandes, como as Rochas, as Penhas, os Penedos e outras famílias; e tem das miúdas, os seixos, que alguns chamam de cascalho. Pedra não anda por vontade própria. Às vezes são empurradas, caem, escorregam, mas andar mesmo, não andam.

“Planta também não anda não. Polo menos eu nunca vi. Elas estão onde estão porque Nosso Senhor Jesus Cristo, louvado seja, botou elas lá quando criou o mundo. Ou ele ou o Pai dele. Mas no Sertão, acho que Deus mandou um anjo para semear aquela plantalhada seca e espinhosa da caatinga.

“Eu até vi na igreja a estáuta do anjo que deve ter feito o serviço. Acho que foi ele, por causa das véstias. Ele andava de alpercata, não usava gibão, mas tinha um guarda-peito. Tinha um facão na cinta, acho que para limpar o caminho no meio da galharia. Ou para se defender, se aparecesse uma onça. Porque suçuarana não respeita anjo. Para ela só existe duas categorias de coisas no mundo, as de comer e o resto. E anjo, para ela, é de comer, porque anda. Anda e tem asa, igual ema, que é comida de onça.

“Esse anjo também usava um tipo de saia, mas era de couro, umas tiras largas de couro. Acho que era para proteger as intimidades. A galhaça da caatinga corta, fura e rasga. No tempo dos anjos ainda não tinham inventado a perneira, isso veio depois. Ele não tinha chapéu de couro. Também, naquele tempo, era só Deus e os anjos, e Deus estava por todo lado. Cada vez que um anjo encontrava Deus, tinha de tirar o chapéu, porque assim é que se faz. Como o anjo podia estar com as mãos ocupadas na plantação da caatinga, era mais fácil não usar chapéu, para não precisar tirar toda hora.

“Entonce, pedra e planta não andam. Quem anda é gente e bicho. Animal também anda, mas animal é como bicho. A qualidade da andança varia conforme os pés. Gente e passarinho tem dois. Onça, cavalo, bode e vaca têm quatro. Cachorro também. Menos o Piaba, de meu compadre Ciço, que só tem três, porque a onça arrancou um de um tapa. Também tem bichos sem pé nenhum, que são a cascavel e as outras serpentes. Cascavel é bicho danado de ruim, que morde só para matar e nem come.

“O peba é bicho da qualidade de quatro pés. Ele tem quatro pés e uma casca que até lembra a saia do anjo da estáuta que falei, porque é feita de tiras. Só que não são tiras de couro, que nem a do anjo, são de casca mesmo, que nem a do tatu. Mas peba não é tatu, é peba. Se fosse tatu, não se chamava peba.

“Tatu tem de três qualidades. Tem o canastra, que é grande e come formiga; tem o galinha, que se chama galinha, mas é tatu. Esse é mais ou menos do tamanho do peba, e come formiga também. E tem o tatu-bola, que é mais pequeno e se enrola todo. Fica que nem um coco, quando o cachorro chega perto dele. Esse também come formiga.

“O peba come formiga, que nem tatu, mas é menos. Ele gosta é de variar. Come macaxeira, coró, minhoca e outras comidas de peba. É por isso que a carne dele é boa. Tem gente que diz que ele come defunto, mas não é verdade. É que as minhocas vão roer a carne do extinto ou do bicho morto e o pebinha vem comer as minhocas. Defunto ele não come não, come minhoca.

“Para caçar o peba tem o jeito certo. Precisa ter um cachorro bom, pebeiro, para encontrar o rastro do peba. Mas tem de ser cachorro velhaco. Se for inhenho, ele vai achar o peba na toca e aí pode chorar a noite toda que o peba não sai e ninguém tira ele de lá. Cachorro velhaco acha o peba fora da toca e dá o aviso. Aí a gente corre, para não dar tempo do peba se entocar.

“Se tiver mais de um cachorro, o peba não corre; ele começa a fazer um buraco no chão para se enterrar. Aí o vivente tem de ficar esperto. O peba finca as unhas no buraco e não tem força que arranque ele de lá. Só sai com boas maneiras. A gente segura o rabo do peba, com o dedo fura-bolo esticado na parte de baixo, e vai seguindo o rumo da cauda do bicho. Logo o dedo encontra o toba do peba. Nem precisa fazer força. Enfiou o dedo, o bicho relaxa as unhas, preocupado com o que está acontecendo lá atrás, onde ele não vê. Aí é só puxar o peba para fora, sem tirar o dedo. Tá pego.

“Se prepara o peba de várias maneiras. Pode cozinhar ou assar na casca, ou tirar a casca antes do preparo, mas o gosto muda. Bom mesmo é soltar a carne da casca, cortar nas juntas, dar uma fritura ligeira e depois voltar para a casca para assar no braseiro ou no forno, tampada com a casca da barriga dele. A pimenta é o principal tempero, porque sem ela o gosto fica aperreado, o peba fica sem personalidade.”

Estando o desinfeliz já bem servido de sabedoria sertaneja, lasquei a picardia:

— E pimenta, Vossa Insolência sabe o que é?

E me arretirei sem cantar.

• Quinca de Tiburço •

quinta-feira, 16 de junho de 2011

A jaqueta amarela





Uma faca era o instrumento que usaria. A faca grande, da gaveta da pia. Bem afiada, como sempre.
Imaginou que o gesto seria simbólico, metafórico. Sim, uma metáfora do fim do amor, daquele amor. Ou da recuperação da autoestima. Não. Era uma atitude de eliminação, de destruição. Não seria uma metáfora adequada para a recuperação da autoestima. Queria, sim, recuperar o conceito que tinha de si próprio, mas a ação não expressaria isso.
— Foda-se — disse para si mesmo. — Vai ser assim e ponto final.
Pegou a faca, experimentou o fio e achou que não estava muito bom. Mas nada que o fuzil não pudesse consertar. Encostado na pia da cozinha, pôs-se a rememorar os fatos, enquanto passava diligentemente a lâmina no afiador.
Ainda ecoava em seus ouvidos o tom agressivo da voz dela ameaçando:
— E não venha com aquela ridícula jaqueta amarela!
Ele nem explicou que não era amarela, era terra. Ela sabia disso, ouvira muitas vezes. A cor era terra e não amarela. Ela sabia. Se disse amarela, tinha intenção de ofender, de magoar. O que ela jamais entenderia é que não se tratava de uma simples peça de couro curtido, cortado e costurado. A jaqueta amarela – terra – era como sua própria pele. Mais que sua pele, era sua marca inconfundível, sua personalidade. Sua alma, talvez. Se ela não o queria com a jaqueta, estava claro que não o aceitava como era. A jaqueta era ele. Ele era a jaqueta.
O tinir do aço percorrendo delicadamente a extensão do fuzil o fez recobrar o dilema da metáfora da ação planejada. Se a jaqueta era ele e ele era a jaqueta, seria um suicídio metafórico; o contrário da recuperação da autoestima. Mas também podia ser a metáfora de um renascimento. “Matar o eu anterior para permitir o advento de um novo eu.” Se entenderiam isso ou não, era uma questão que não o preocupava. Ele sabia que significaria o começo de uma nova vida, um fogo de Fênix. E mergulhou novamente em recordações.
Ainda se lembrava de quando comprara a jaqueta, havia mais de vinte anos. A viagem de emergência, uma necessidade do trabalho, fora decidida de supetão. Não pudera passar em casa para pegar algumas roupas. E no caminho o tempo mudou, começou a esfriar. Precisava comprar um agasalho, pois o trabalho atravessaria a noite, que se anunciava fria. Em busca de uma loja de roupas, entrou na primeira cidade para a qual havia um acesso na estrada.
Cidade era exagero. Não passava de um amontoado de casas em volta de uma igreja, mas havia uma fabriqueta de roupas de couro. Era mais uma oficina, uma coisa artesanal, com um aspecto que parecia anterior à revolução industrial. Vieram-lhe à mente as guildas, as corporações medievais de artesãos, com suas normas. Deviam fabricar selas, botas, bainhas para espadas, baús, armaduras e escudos. E o jovem que se aproximava devia ser um aprendiz. Provavelmente atendia os fregueses, enquanto o mestre traçava o corte de alguma peça na oficina dos fundos.
Não era um aprendiz, era o vendedor. Educado, sorridente, fino, com gestos estudados, parecia deslocado naquela aldeia rústica. Fora esse rapaz que lhe ensinara, sorridente, o nome da cor da jaqueta.
— Amarela? — comentara com tom de desagrado.
— Amarela, não; é terra. Combina com qualquer cor de calça. E veste muito bem um corpo esguio como o seu.
Corpo esguio uma ova. Etiópia era magro mesmo. Miseravelmente magro. Daí o apelido, uma referência ao grande número de famintos daquele país que a TV mostrava na década de 1980. Alto como uma palmeira, magro como um caniço; a jaqueta amarela – terra –, com corte de paletó, era a única que lhe servia. Os outros modelos ficavam muito curtos ou largos demais. O preço era bom e o frio apertava, portanto ficou com a jaqueta amarela. — Terra! — corrigiu o vendedor.
Rigorosamente não era uma jaqueta, o corte estava mais para um blazer, explicara o rapaz. Mas se o freguês preferia chamar de jaqueta, tudo bem. Afinal, tinha costuras laterais no peito e nas costas, como uma jaqueta.
— E inglês tudo é jacket, não é mesmo?
Aos poucos, foi-se acostumando à vestimenta. No início, usava-a no trabalho, para ver se acabava mais depressa, pois não tinha gostado da cor. Os colegas do trabalho, os vizinhos e os conhecidos foram-se habituando a ver o magro Etiópia com o casaco amarelo.
— Terra! — corrigia prontamente Etiópia, chamando atenção com as mãos para o talhe do casaco. Não era propriamente elegante, mas combinava com a magreza extrema de Etiópia. Não fosse tão consolidado o apelido, Etiópia passaria a ser chamado de Jaqueta ou de Amarelo. Até houve uma ou duas tentativas, mas o nome Etiópia prevaleceu.
Pouco tempo depois, a vasta experiência de Etiópia tirou-o do serviço pesado. Assumiu a coordenação das equipes de campo. Raramente precisava acompanhar algum trabalho no local. Passava a maior parte do tempo no escritório, entre plantas, mapas, planilhas e o telefone. A jaqueta repousava no espaldar da cadeira. Só a vestia na hora de ir embora. E como roupa de chefe não gasta, o casaco ia-se tornando eterno.
A afeição pela vestimenta desenvolvera-se no decorrer dos anos. Foi o traje usado nos eventos mais significativos de sua vida. No enterro da mãe, no... É verdade. Sua vida não tinha muitos eventos significativos. Mas lembrava-se de estar vestindo a já velha jaqueta quando conheceu Rose. Conquanto não quisesse admitir agora, por muito tempo julgou significativa aquela ocasião. Chegara mesmo a pensar que Rose teria se interessado na jaqueta e não nele.
Não estava totalmente errado. Ele se destacava na festa de fim de ano da empresa. Não só pela cabeça acima das de todos os demais presentes, mas também pela indumentária que, como afirmara o jovem e delicado vendedor, combinava com os blue jeans que costumava vestir.
O desgaste nos cotovelos, resultado dos anos de uso, tinha sido habilmente disfarçado com retalhos de couro marrom. O velho casaco amarelo dissimulava a magreza de Etiópia, tornando-o um homem quase atraente. Sem a jaqueta era um varapau; com a vestimenta, porém, parecia quase bem-proporcionado. Pelo menos o suficiente para atrair a atenção da jovem Rose, que fazia estágio na empresa.
Da festa até o início do namoro não passou uma semana. Daí até o casamento, porém, já rolavam mais de dez anos. No começo, Rose precisava se firmar na atividade profissional. Mudou de emprego várias vezes, algumas para melhor, outras nem tanto. Até de cidade mudou. Os dias dedicados ao namoro diminuíram, mas não terminaram. Etiópia ia vê-la num fim de semana e ela vinha vê-lo no seguinte. O relacionamento era sério, baseado na confiança que nenhum dos dois jamais traiu. E por muitos anos não falaram de casamento.
Quando se considerou uma profissional bem-sucedida, Rose decidiu se casar. Etiópia tinha tudo para ser um bom marido. Só não convinha pressioná-lo, ela sabia. Tinha de persuadi-lo com meiguice, com doçura, sem jamais dar um ultimato ou fazer algum tipo de ameaça, por mais velada que fosse.
Solteirão assumido, beirando os cinquenta, Etiópia não tinha nada contra o casamento. Nem a favor. Até se casaria, já que vivia sozinho desde a morte da mãe. Mas tinha costumes de homem sozinho. Nada que não fosse socialmente aceito. Não bebia muito, só jogava de brincadeira, não frequentava nenhum tipo de igreja. Nem cabarés. E nunca trouxe para casa as mulheres perdidas que eventualmente encontrava. Isso, no passado; porque depois que começou a namorar Rose, ela passou a ser a única mulher de sua vida.
Seu problema se resumia a desfrutar de todos os espaços da casa. Homens que se casam cedo não têm lugar na casa, por isso precisam ficar mexendo no carro ou consertando coisas. Se não tiverem nada para consertar nos fins de semana, ficam perdidos, porque estorvam, onde quer que fiquem. Para não incomodar na cozinha, geralmente ficam na sala, vendo televisão, mas até isso irrita as mulheres.
Etiópia sabia que era assim. E Rose sabia também, por isso propôs uma forma de convívio conveniente para ele. Casariam, sim, mas não viveriam na mesma casa. Pelo menos não o tempo todo. Durante a semana, cada um continuaria morando na própria casa, já que viviam em cidades diferentes. Nos fins de semana, um iria para a casa do outro, como vinham fazendo nos últimos anos do namoro. Em outras palavras, mudava-se o estado civil, mas tudo continuaria como antes.
Tudo tão perfeito que Etiópia até concordaria com uma cerimônia religiosa, se fosse o desejo de Rose. Mas não era. Ela não fazia questão. Casariam no civil, somente. E fariam uma bela festa para os amigos.
O cuidado de ambos era com a festa. Queriam que fosse inesquecível. Etiópia queria uma grande orquestra de baile, nos moldes das big bands da metade do século passado, que tocasse foxblues, suingues, baladas e valsas. Para Rose, poderia ser até uma orquestra de berimbaus, desde que o repertório incluísse “Paralelas”, sua música predileta, composta e gravada quando ela ainda nem tinha nascido.
A preocupação maior de Rose era com o jantar. Ela não quis saber de bufês. Queria um jantar muito mais especial do que qualquer bufê conseguiria fazer. Se pudesse, ela mesma iria ao mercado escolher os alimentos e prepararia os pratos. Mas, como noiva, sua presença era essencial junto dos convidados.
Jantaram em diferentes lugares por semanas a fio, até escolherem a comida que ela julgava adequada. Não foi fácil convencer o dono do restaurante e o chef a fecharem a casa para a festa do casamento. A construção do palco da orquestra e a decoração do ambiente obrigariam o restaurante a permanecer fechado por uma semana. Tiveram de oferecer um bom dinheiro para consegui-lo. Mas valeria a pena.
O espetáculo da entrada triunfal da noiva com vestido branco não exigia uma igreja. Seria apresentado no restaurante, transformado em elegante salão de festas, ao som de uma grande orquestra. Depois, um jantar excelente, com vinhos adequados, e um baile para atravessar a noite.
Estavam ambos vivendo a euforia da preparação da festa quando Etiópia chegou à casa dela, vibrando de felicidade. Tinha conseguido encontrar e contratar a orquestra de seus sonhos. E a crooner já estava ensaiando “Paralelas”. Rose sorriu, feliz, e disse que tinha marcado a data do casamento civil. Não seria no dia da festa, mas isso não tinha importância. Afinal, só era preciso um casal de amigos como testemunhas. Depois almoçariam juntos, no mesmo restaurante que faria a grande festa, alguns dias mais tarde.
Passaram mais um fim de semana juntos, conversando sobre a festa, e chegou a hora de Etiópia voltar para sua cidade, para enfrentar mais uma semana de trabalho. Antes de sair, ele perguntou se precisaria ir de gravata ao cartório. E foi então que tudo desabou.
— De gravata, claro — disse ela. E completou: — E não venha com aquela ridícula jaqueta amarela!
Etiópia entrou no carro sem o costumeiro beijinho de despedida e fez a viagem de volta ruminando a frase de Rose. Mastigou-a incontáveis vezes, mas não conseguiu engolir. Que fazer? Aparecer no cartório de jaqueta amarela? Seria um desafio, uma queda de braço com Rose. Ele venceria, claro. Rose não iria deixar de se casar só por isso, mas ficaria amuada o resto do fim de semana, e não poderiam falar da festa do casamento. Ainda havia coisas a combinar, para que tudo saísse à perfeição.
Mas se não usasse o fatídico casaco, estaria cedendo a uma ordem de Rose. Uma ordem baseada simplesmente no gosto dela, que não levou em conta os sentimentos do futuro marido. O dilema não saía da cabeça de Etiópia, enquanto dirigia de volta para casa. Até que tomou a decisão: destruiria o casaco. Destruiria o casaco e não apareceria para o casamento. Nem no civil nem no restaurante. E sumiria por algum tempo, para fugir das explicações.
Não devia satisfação a ninguém, em seu entender; nem mesmo a Rose. Mas sabia que haveria perguntas. Etiópia era um homem de ação, não tinha desenvoltura para explicações. Até os relatórios técnicos eram escritos por um colega, o Luciano, especialmente contratado para fazer o que Etiópia não conseguia, para expor o que foi feito, por quê, como, quando, etc. As decisões eram de Etiópia, mas quem as justificava e argumentava era Luciano, que aprendera muito com isso. A ponto de se tornar o sucessor natural de Etiópia, depois que o magro chefe se aposentasse.
Não seria difícil fugir por uns dois meses, já que tinha férias vencidas acumuladas. Depois pediria demissão e sumiria de vez. Ia viver no mato, nalguma cidadezinha esquecida, como tantas que conhecera. Poderia viver da poupança por um bom tempo. E depois começaria a receber a aposentadoria e o plano de previdência complementar, no qual entrara muito jovem. Nunca mais saberia de Rose nem dos amigos e colegas do trabalho. E ninguém saberia dele.
Rose teria de entender a atitude de Etiópia pelo que encontraria na casa, quando finalmente a abrissem: tudo no lugar de sempre, exceto pelos minúsculos pedacinhos da jaqueta amarela em cima da tábua, na pia, e espalhadas pela cozinha. Ela saberia que o comentário sobre a jaqueta amarela tinha sido o motivo de seu sumiço. E confirmaria o estranho senso de justiça de Etiópia: destruía o casamento e o casaco que motivou a morte do amor. Pelo menos ele imaginava que Rose fosse interpretar desse modo a ação.
Talvez uma conversa com Luciano o fizesse entender que precisava deixar mais clara sua postura, que deveria conversar com Rose. Mas Etiópia não saberia o que falar. O que sentia por Rose transformara-se numa mágoa tão profunda, tão doída, que precisava ser descarregada por meio de um ato destrutivo. E a vítima de tal ato seria a própria jaqueta. Tão lógico quanto matar o mensageiro que traz a má notícia. Mas a questão prescindia de lógica; era puramente emocional.
Enrolaria a jaqueta como um rocambole, bem apertada, colocaria na tábua sobre a pia e a cortaria em fatias finíssimas. Por isso a boa faca precisava estar muito bem afiada. Depois disporia as tiras paralelamente e as cortaria novamente, para impedir que o material fosse aproveitado de alguma forma. Sobraria apenas um punhado de confetes quadradinhos de couro amarelo. Ou terra. O gume estava perfeito agora, e o fuzil ficaria à mão, para acertar o fio da faca durante o metódico trabalho destrutivo.
Etiópia começou a enrolar a jaqueta, bem apertada, mas parou, para vesti-la uma última vez. Queria se despedir da vestimenta que tanto significava para ele. Pela primeira vez, a vestia “em pelo”, sem camisa. E sem calças. Quando estava em casa, Etiópia costumava ficar só de cuecas, mesmo em dias meio friozinhos, como aquele. Era um hábito que podia manter, por morar sozinho.
Antes mesmo de fechar o primeiro botão da jaqueta Etiópia começou a sentir um conforto que jamais imaginara. Pensava que o couro fosse duro, mesmo com o forro, sobretudo nas costuras. Mas não. Não sentia costura alguma. E à medida que a vestimenta se aquecia, tornava-se mais agradável o contato com sua pele. Veio-lhe a mente o calor do corpo de Rose, quando se achegava ternamente a ele na cama. A jaqueta tocava-o do mesmo modo macio e carinhoso. Até mais gostoso, pois Rose não aquecia todo o torso de Etiópia, como a jaqueta fazia.
“A felicidade”, pensou ele, reinterpretando John Lennon, “é um casaco quente.” Foi para a sala e sentou-se no sofá, extasiado, para melhor desfrutar daquela sensação e acabou se deitando. Etiópia se embriagava na mornidão do agasalho, que, como se fosse feito de malha, tocava toda sua pele. Nem mesmo nas pernas nuas ele sentia frio. A jaqueta agora pressionava-lhe um pouco mais o tórax, como um abraço de corpo inteiro. Tão agradável que Etiópia dormiu.
O legista escreveu “parada cardiorrespiratória”, mas não estava certo da causa mortis. Se houvesse algum sinal de que a vítima tivesse tido o tórax comprimido ou os braços imobilizados, ele teria escrito “asfixia mecânica”. Mas os investigadores da polícia não encontraram nada que pudesse sugerir alguma ação externa. A jaqueta tinha sido indevidamente retirada da cena pela faxineira, que encontrara o corpo no sofá, antes de chamar a polícia.
Como Etiópia queria, não houve casamento. E ele não viveu para desfrutar do plano de previdência privada. A jaqueta, contudo, sobreviveu. Agora agasalha o namorado da diarista. Que Deus o abençoe.
• Celso Paraguaçu •

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

A raiz da suspeita





O céu limpou tão depressa ontem que deve ter pego de surpresa um monte de alienígenas. Eles preferem ficar em seus discos voadores observando o movimento e os hábitos dos humanos em dias e noites de céu encoberto. Ao contrário de nós, eles enxergam através das nuvens. Mas quando o céu fica limpo muito rapidamente, como ocorreu, eles são pegos desprevenidos e têm de deixar a atmosfera terrestre rapidinho, para não serem vistos.

Algumas naves tiveram de zarpar na maior velocidade em direção ao espaço profundo, o deep space, como dizem os gringos, pois ficaram a descoberto. Observei uma delas pairando com as luzes apagadas, enquanto o piloto tentava fazer o motor pegar. Acho que o ET se afobou na partida, pisou muito fundo no acelerador, e deixou o motor afogar. E aí não tem jeito. Tem de esperar o carburador secar.

Esses discos voadores mais antigos, com motores aspirados, sempre fazem dessas. E convém apagar as luzes para poupar a bateria. Mas já há poucos desses em órbita, são raridades. Vistosos, coloridos, mas muito pouco eficientes. Só um ou outro ET mais conservador mantém sua velha nave encerada, brilhando. A manutenção dessas antiguidades custa os olhos da cara. E olha que alguns ETs têm vários pares de olhos em cada cara.

Hoje em dia os OVNIs têm propulsores de câmara osmótica diferencial, com diálise intraelementar de propulsão iônica. Não têm mais carburadores de palhetas e diafragmas. E não têm mais aquelas luzinhas piscando como antigamente. Agora é tudo sensorial, neural e dialítico. Qualquer idialien consegue ir para onde quiser.

São muito menores também. As naves, não os aliens. Estes continuam com toda a diversidade de tamanhos e formas que conhecemos e outras que não conhecemos. Algumas naves são tão pequenas que um ET precisa de várias delas para viajar. Por isso há pouca oferta de empregos para pilotos experientes de naves extraterrestres. A era de ouro dos ÓVNIS já era. Acabou o romantismo das gigantescas naves em forma de prato emborcado, de calota de fusquinha ou de pirâmide de base triangular. Era muito mais divertido naquele tempo, não acha?

As naves atuais não têm o menor glamour. São meras coisas, familiares a nós humanos. Já faz tempo que essa onda começou, mas as pessoas demoram a se dar conta do que acontece à sua volta. Quando viram os primeiros discos voadores, estavam presenciando os últimos veículos desse tipo. E o planeta já estava repleto de naves individuais das mais diversas formas, com seus ETs disfarçados de humanos circulando entre as pessoas.

Até mais ou menos a metade do século passado, havia ETs com misteriosos equipamentos andando pelos parques em São Paulo. Diziam-se vendedores de refresco, de chá gelado com limão. Circulavam entre as pessoas, cantando seus pregões, quase invisíveis. Mas registravam de perto os rostos, as formas, as roupas, as falas e os hábitos.

Tudo que viam, sentiam e ouviam ficava registrado no tambor, que chamavam de bomba. Sons, cores, expressões, movimentos, usos e costumes, tudo era gravado. A bomba era também a nave individual. Quando os parques fechavam, os ETs usavam os tambores como transporte para as naves-mães. Lá, as informações registradas eram descarregadas no sistema central de armazenamento, e as bombas ficavam prontas para receber novos dados. Eram reabastecidas com chá gelado, para serem novamente utilizadas no dia seguinte.

No Rio de Janeiro, até poucos anos atrás, esse sistema era comum nas praias. Conquanto sobreviva em algumas delas, trata-se de uma modalidade anacrônica de aquisição de informações. Atualmente é utilizada apenas por velhos ETs avessos ao uso de novas tecnologias. Ou que apreciam o visual das bundinhas na praia.

Enquanto as bombas de chá gelado estavam em pleno uso, quase um século atrás, já surgiam os pipoqueiros em frente aos cinemas, circos e parques de diversão. Todos usavam carrinhos iguais, com uma parte de vidro na qual ficavam as pipocas e uma área onde havia um fogareiro sob uma panela preta com uma manivela na tampa.

Parece que ninguém se perguntava por que todos os carrinhos de pipoca eram iguais. Não podia ter um com o fogareiro e a panela na frente? Ou separados do carrinho? Se o propósito fosse apenas o de vender pipocas, poderia. Mas não havia. Assim como não havia nenhum com a panela branca, limpa.

Todo mundo pensava que a manivela servia para mexer as pipocas, mas a finalidade era outra. Era um sistema de transmissão de dados online. Os carrinhos de pipoca não usavam mais dispositivos de armazenamento de informações; absorviam-nas e as transmitiam online, diretamente para seus planetas, pelo transmissor giratório, que para os humanos parecia uma panela suja com uma manivela em cima. Os carrinhos eram seu veículo individual de transporte.

Os “vendedores de algodão-doce” usavam praticamente o mesmo sistema. Usei aspas, porque a mim não enganam. O transmissor era parecido com o dos “pipoqueiros”, mas tinha uma sofisticação mecânica: em vez de manivela, usavam um sistema com pedais, com o que conseguiam uma velocidade muito maior, ou seja, transmitiam em frequências mais elevadas. E o transdutor não era mais preto e ensebado; era de alumínio brilhante.

Não é só na Terra que a tecnologia se desenvolve em grandes saltos. Em outros mundos tem ocorrido o mesmo. Ou você pensa que esses caras com aspecto de nordestino empurrando carrinhos de mão são realmente vendedores de mandioca? Todos usam um carrinho semelhante aos os usados na construção civil. Ninguém tem uma carriola de madeira, ou um carrinho de supermercado. Tem de ser desses de chapa de aço. Claro que se trata de outra modalidade de transporte individual, com um sistema de aquisição e transmissão de dados online.

É fácil perceber que há transmissão direta do carrinho para o planeta alienígena. Observe que o carrinho tem uma forma muito adequada para ser um concentrador de sinais voltado para o céu, como se fosse uma antena parabólica. Muito melhor do que o teto dos carrinhos de pipoca, que parecia um telhado de duas águas. Aquilo funcionava mais como dispersor do que como concentrador de sinais.

Creio que o novo sistema tem um dispositivo de redundância: os dados capturados são também armazenados nas cascas das raízes. Pode observar que os “vendedores” fazem questão de tirar a casca antes de colocar as raízes na sacolinha. Eles descascam as mandiocas com uma facilidade que nós, terráqueos, jamais teríamos. Isso porque sabem exatamente onde colocar a faca para desprender facilmente o dispositivo pelicular de armazenamento que chamamos de casca. A mim não enganam, mesmo que imitem o sotaque sertanejo do Nordeste.

Quem compra leva somente as raízes brancas. As “cascas” são armazenadas até a confirmação do sinal recebido. Se a transmissão online for satisfatória, as cascas vão para o lixo. Mas se houver alguma falha, retransmitem as informações armazenadas nos dispositivos peliculares. Essa é a redundância do sistema, muito recomendada em termos de segurança.

Os vendedores de mandioca em carrinhos-de-mão são ETs, como também o eram os pipoqueiros e os vendedores de chá gelado. Os médicos e enfermeiros aqui da instituição concordam plenamente comigo. Os poucos pacientes que discordam eu não levo a sério. São uns malucos.

• Celso Paraguaçu •

terça-feira, 3 de novembro de 2009

Chez Miojô



O querido amigo Nivaldo requereu nossa expertise de restauranteur com a seguinte consulta:

“Estou pensando em tirar proveito comercial de meus dotes culinários, mediante a abertura de um bar/restaurante intitulado Miojerie – a Casa do Miojo. Só miojo elaborado nos mais diversos tipos de molhos. Haverá também o serviço de Miojo Delivery. Solicito sugestões.”
Depois de profunda análise do mercado e da personalidade do Nivaldo, nos dispomos a responder a sua consulta.

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Caro Nivaldo
Uma miojerie tem tudo a ver com você, que é francamente francófilo, capaz de recitar em francês as fábulas de La Fontaine, com rima e em alta velocidade. Advirto, contudo, que não acredito no modelo delivery para essa especialidade. É que a massa continua sob cozimento no trajeto até a casa do freguês, perdendo o ponto al dente cariado. E você não vai querer comprometer o prato, oferecendo a massa fora do ponto.

O estabelecimento precisa ter mesas, nas quais as pessoas possam saborear as iguarias. Mas nada de fast food. Resista à tentação de fazer um “Miojo in the Box” ou um “MacArroni’s”. Sua proposta se encaixa com perfeição num local elegante, para o público adulto recém-chegado ao extrato consumidor da sociedade.

Seria muito adequado um ambiente parisiense antigo, um típico bistrô anterior à Segunda Guerra, antes da contaminação cultural americana. O nome pode ser Chez Miojo, La Cave du Miojo ou algo em francês que remeta à especialidade culinária da casa. Chez Nini ou La Petite Casserole, por exemplo, soam bem, mas não dizem qual é a comida. A menos que seja Chez Nini Miojerie. Pode ser.

Com a música, porém, você terá dificuldade. O ambiente sugere música ao vivo, mas a moderna música francesa soa como americana ou berbere. Tais sons são incompatíveis com a finesse do ambiente. No entanto a música francesa mais antiga não pode mais ser tocada. Não por faltarem bons músicos, mas sim porque não se fabrica mais aquela cansativa sanfoninha deles. O que há de mais parecido é a concertina, a sanfona de oito baixos que ainda se toca no Nordeste. Mas essa serve. Aliás, parece mesmo ser muito adequada à nouvelle cuisine du miojô. Em vez de la balade ou la valse, teremos baião, coco e arrasta-pé, ou le bayon, le coco, le traine-pied.
Naturalmente, você fará os mais deliciosos pratos franceses adaptados ao gosto e ao poder aquisitivo do consumidor brasileiro. Assim, os cariocas poderão degustar seu excelente miojo au haricot noir, em vez do macarrão com feijão-preto que costumam comer em casa.

O restaurante terá nome e aspecto francês, mas a cozinha será internacional e inovadora, bem ao seu estilo. Outra sugestão de prato é o miojo com molho madeira. O molho é de preparo simples, bastando juntar numa casserole um pouco de água, uns cubos de caldo Kitano (mais barato que os demais) e vinho Chapinha de mesa tinto seco, que também será servido na refeição. Para dar o sabor amadeirado, colocam-se no molho algumas lascas de eucalipto, que são retiradas antes de servir. No lugar de champignons, sugiro uns toletes de macaxeira, para promover a aculturação culinária.

Pratos tradicionais de outras cozinhas européias não podem ser esquecidos. E, naturalmente, com o sabor exclusivo da cozinha brasileira. Assim o miojo al aglio e olio será feito com minúsculos dentinhos de alho chinês, muito pequenos para tirar a película. São fritos com película e tudo, no óleo de soja, cujo aroma é inigualável.

Da culinária alemã você trará as saucisses, para um delicioso molho feito à base de salsicha de metro (aquela pintada de vermelho, que em alguns mercados é vendida por quilo, como salsicha a granel) e massa de tomate Arisco. Conhecido como macarrão com “salchicha”, o prato tem grande aceitação junto ao público brasileiro. E certamente ganhará um novo relevo com seu modo de preparar e um nome francês. Talvez chamar as saucisses de sauchiches seja uma boa ideia: miojo avec des sauchiches.

O ponto, ou seja, o local onde instalar a miojerie, é de extrema importância. Os bistrôs parisienses que o cinema gravou em nossa memória ficavam às margens do Sena ou perto do Bois de Boulogne. Não temos um rio tão bonito, nem um bosque parecido, mas você pode montar um simpático bistrozinho à beira do Tamanduateí ou com vista para a Fazenda do Carmo, na Zona Leste. Seria o sonho de incontáveis consumidores recém-chegados ao mercado.

Vejo as mães que vêm buscar seus filhos na escola municipal aqui perto de casa. Enfiam um pacote de “salgadinho” nas mãos das crianças, para irem enchendo o bucho, porque a janta vai demorar para sair. Se houvesse uma miojerie na beira do corguinho da rua de baixo, certamente elas prefeririam oferecer aos petizes um nutritivo miojô avec des sauchiches em vez de entupi-los com essa coisa de isopor com cheiro de chulé.

E nos fins de semana? Esses consumidores não têm aonde ir. Não se sentem à vontade nos shopping centers. Mas lá por perto, tudo bem. Pois ao lado do Shopping SP Market existe um córrego com barrancos cobertos de capim. É o ponto ideal para instalar um trailer da Chez Nivaldo Miojerie. Existem outros trailers, mas são meros botecos; nenhum tem a elegância, a finesse, de uma miojerie.

Em termos comerciais, o ponto c’est ci bon, pois fica em frente à gare Jurubatuba, da CPTM. Em frente à gare, ao lado do shopping center, com vista para o córrego e, o que é melhor, muito próximo do local em que o padre Marcelo faz seu espetáculo religioso aos domingos. Já pensou que fome têm às dez da manhã aquela montanha de fiéis? São milhares deles, ungidos com a água benta lançada com uma brocha, cansados de ficar em pé desde as quatro da manhã e alimentados apenas com um pedacinho do corpo de Cristo. Para o espírito, o alimento pode ser suficiente, mas o corpo pede um miojo avec aile de poule en fricot. O ensopado de asa de galinha dá um molho culturalmente bem aceito no Brasil e remete aos anjos, que são bípedes alados, como os frangos. Os fregueses do padre Marcelo certamente se tornarão seus fregueses também.

Mais ainda. Depois das dez da manhã, quando os bizantinos fiéis do Padre Marcelo vão para casa, chegam os frequentadores da feira-livre montada dois quarteirões acima. Sabendo da existência da miojerie, provavelmente abrirão mão do pastel de ração canina que comem atualmente antes de ir embora. Ninguém em sã consciência trocaria a cozinha internacional com inspiração francesa pela culinária popular chinesa.

Você não pode esperar que o corguinho tenha um aroma agradável. O cheiro é forte e ruim, mas ajuda a compor o clima da miojerie. Remete ao odor da Paris de duzentos anos atrás. E você vai concordar que não há muita diferença entre o cheiro de esgoto do corguinho e o aroma do miojo.

Estou certo de que a miojerie será um sucesso, mas uma questão ainda me preocupa. É que se os chineses inventaram o macarrão, os japoneses inventaram o miojo, que é um spaghetini pixaim. O problema é que no Brasil o pixaim está em baixa. Talvez seja preciso você aplicar a famosa chapinha no miojo antes de preparar os pratos. Vai ficar com aspecto de macarrão espichado, como fica o cabelo das moças, mas elas acharão que está lindo.

Naturalmente essa preocupação estética se refere exclusivamente ao público feminino. Homem come de qualquer jeito, seja liso, pixaim ou com “escova progressiva”. Se a moça tiver uma boa culinária é o que basta.

• PGC •