Acho que vou dar
sociedade ao Douglas neste Meia-sola. Ele tem comparecido nestas páginas com
muito mais frequência do que eu. Vamos a mais uma crônica dele.
Lá pelos meus 12 anos,
na esquina da minha casa tinha uma padaria. Era a padaria do seu Manoel.
Seu Manoel, nem
precisava dizer, era português. E além ser português, ser dono de padaria e se
chamar Manoel, tinha um sotaque lascado e era uma das pessoas mais rabugentas e
ranzinzas que conheci na minha vida. A molecada morria de medo dele, porque ele
vivia gritando com seus funcionários, que sempre aceitavam a bronca de cabeça
baixa e pareciam ter medo dele. Então a gente também tinha.
Um dia encontrei meu
irmão, dois anos mais novo que eu, chegando ao portão de casa com um sonho de
padaria na mão e uma cara esquisita.
Perguntei o que havia
acontecido e ele me disse que tinha comprado o sonho lá no seu Manoel, mas que
o sonho estava estragado.
Não tinha como não
acreditar nele, porque moleque come qualquer coisa sem titubear, e com meu
irmão não era diferente. Mas ao pegar o sonho já vi que estava ruim mesmo. E o
gosto? Eca! Mais azedo que seu Manoel.
O que fazer agora? Meus
instintos de irmão mais velho estavam aflorando e eu sentia que deveria cobrar
a bronca. Mas era seu Manoel, caramba!
Me enchi de coragem,
peguei o saquinho de papel com o sonho estragado e fomos para a temida esquina.
Juro que, atravessando a rua e já avistando a figura do português com seu
jaleco e gorro bibico azul claro lá dentro da padaria, ainda pensei se o
problema não poderia ser resolvido uma outra hora. Talvez voltasse mais tarde
com mais umas cem pessoas e meu cão pastor, o Duque. Mas não havia mais tempo.
Já estava dentro da padaria, diante do balcão e escutei a doce voz do seu
Manoel.
– Que que é menino?
Perguntou o portuga.
– Ó seu Manoel, meu
irmão comprou esse sonho aqui mas está estragado. – Disse com uma cara bem
seria. Se é que existe esse tipo de cara na minha cara.
– Estragado?
– É estragado, tá azedo.
– Respondi, já achando que o dialogo de negociação ia bem pra caramba.
– Deixa eu ver. Dá ele
aqui.
Entreguei o produto pro
seu Manuel e ele o cutucou com aquele dedo que já deveria ter coçado de tudo
quanto é coisa nesse mundo. Cheirou o dedo e experimentou com a ponta da
língua.
– Ah, que estragado que
nada, o pá. Isso é o gosto do limão. Rosnou o português com a mão esticada me
devolvendo o sonho.
– Que isso seu Manoel?
Tá estragado sim, eu respondi. E essa cor verde no creme, é do limão também?
– Vá, vá, vá, vá… Tá
estragado nada. Deixa de besteira moleque. E se não quer mais nada, vamos
saindo, vamos! Ordenou o seu Manuel, encerrando o caso.
Ah, meu Deus! O gosto da
derrota... Estava mais angustiado que um goleiro na hora do gol, como dizia na
época, uma música do Belchior.
Fomos saindo da padaria
levando a tristeza e nosso sonho estragado embora. Aquilo não poderia ficar
assim! Meus sentimentos de irmão mais velho e responsável foram aflorando mais
e mais, junto com minha raiva. Uma raiva de toda maldita coroa portuguesa que
deveria ter sido massacrada impiedosamente por Napoleão Bonaparte. Aqueles
pensamentos foram girando e girando na minha cabeça, até que, numa girada digna
de um lançador de beisebol, eu virei para trás e arremessei o sonho com toda
força na direção do balcão.
O sonho começou o seu
lindo voo parabólico, ganhando força feito um cometa e se espatifou na parede,
atrás do seu Manoel, após passar a um palmo da famigerada caneta presa na sua
orelha.
Logo após o barulho fofo
do sonho batendo na parede, e com seu Manoel ainda com seus olhos arregalados
de susto, ouviu-se o brado retumbante: “Limão o seu cu, português do caralho!”
E corremos, e corremos.
Eu e meu irmão corremos muito. É impressionante como moleque consegue correr
muito e rir muito ao mesmo tempo sem tropeçar.
Não me lembro muito bem
agora, mas creio que aquela esquina foi evitada por uns meses até tudo se dissipar
na rotina daqueles dias.
Há pouco tempo eu passei
em frente ao prédio da velha padaria, que está totalmente deteriorado. E quem
passava na rua não entendia bem o que aquela pessoa fazia ali em frente. Indo
até o meio da rua e voltando pra calçada. Virando e olhando. Medindo e rindo.
Não imaginavam que eu
rememorava com uma espécie de alegria besta e saudosista, a minha pontaria, o
lindo voo do sonho, o eco dos palavrões e as risadas.
• That's all folks, Douglas
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