sexta-feira, 10 de maio de 2013

Boa lembrança de um sonho ruim



Acho que vou dar sociedade ao Douglas neste Meia-sola. Ele tem comparecido nestas páginas com muito mais frequência do que eu. Vamos a mais uma crônica dele.

Lá pelos meus 12 anos, na esquina da minha casa tinha uma padaria. Era a padaria do seu Manoel.
Seu Manoel, nem precisava dizer, era português. E além ser português, ser dono de padaria e se chamar Manoel, tinha um sotaque lascado e era uma das pessoas mais rabugentas e ranzinzas que conheci na minha vida. A molecada morria de medo dele, porque ele vivia gritando com seus funcionários, que sempre aceitavam a bronca de cabeça baixa e pareciam ter medo dele. Então a gente também tinha.
Um dia encontrei meu irmão, dois anos mais novo que eu, chegando ao portão de casa com um sonho de padaria na mão e uma cara esquisita.
Perguntei o que havia acontecido e ele me disse que tinha comprado o sonho lá no seu Manoel, mas que o sonho estava estragado.
Não tinha como não acreditar nele, porque moleque come qualquer coisa sem titubear, e com meu irmão não era diferente. Mas ao pegar o sonho já vi que estava ruim mesmo. E o gosto? Eca! Mais azedo que seu Manoel.
O que fazer agora? Meus instintos de irmão mais velho estavam aflorando e eu sentia que deveria cobrar a bronca. Mas era seu Manoel, caramba!
Me enchi de coragem, peguei o saquinho de papel com o sonho estragado e fomos para a temida esquina. Juro que, atravessando a rua e já avistando a figura do português com seu jaleco e gorro bibico azul claro lá dentro da padaria, ainda pensei se o problema não poderia ser resolvido uma outra hora. Talvez voltasse mais tarde com mais umas cem pessoas e meu cão pastor, o Duque. Mas não havia mais tempo. Já estava dentro da padaria, diante do balcão e escutei a doce voz do seu Manoel.
– Que que é menino? Perguntou o portuga.
– Ó seu Manoel, meu irmão comprou esse sonho aqui mas está estragado. – Disse com uma cara bem seria. Se é que existe esse tipo de cara na minha cara.
– Estragado?
– É estragado, tá azedo. – Respondi, já achando que o dialogo de negociação ia bem pra caramba.
– Deixa eu ver. Dá ele aqui.
Entreguei o produto pro seu Manuel e ele o cutucou com aquele dedo que já deveria ter coçado de tudo quanto é coisa nesse mundo. Cheirou o dedo e experimentou com a ponta da língua.
– Ah, que estragado que nada, o pá. Isso é o gosto do limão. Rosnou o português com a mão esticada me devolvendo o sonho.
– Que isso seu Manoel? Tá estragado sim, eu respondi. E essa cor verde no creme, é do limão também?
– Vá, vá, vá, vá… Tá estragado nada. Deixa de besteira moleque. E se não quer mais nada, vamos saindo, vamos! Ordenou o seu Manuel, encerrando o caso.
Ah, meu Deus! O gosto da derrota... Estava mais angustiado que um goleiro na hora do gol, como dizia na época, uma música do Belchior.
Fomos saindo da padaria levando a tristeza e nosso sonho estragado embora. Aquilo não poderia ficar assim! Meus sentimentos de irmão mais velho e responsável foram aflorando mais e mais, junto com minha raiva. Uma raiva de toda maldita coroa portuguesa que deveria ter sido massacrada impiedosamente por Napoleão Bonaparte. Aqueles pensamentos foram girando e girando na minha cabeça, até que, numa girada digna de um lançador de beisebol, eu virei para trás e arremessei o sonho com toda força na direção do balcão.
O sonho começou o seu lindo voo parabólico, ganhando força feito um cometa e se espatifou na parede, atrás do seu Manoel, após passar a um palmo da famigerada caneta presa na sua orelha.
Logo após o barulho fofo do sonho batendo na parede, e com seu Manoel ainda com seus olhos arregalados de susto, ouviu-se o brado retumbante: “Limão o seu cu, português do caralho!”
E corremos, e corremos. Eu e meu irmão corremos muito. É impressionante como moleque consegue correr muito e rir muito ao mesmo tempo sem tropeçar.
Não me lembro muito bem agora, mas creio que aquela esquina foi evitada por uns meses até tudo se dissipar na rotina daqueles dias.
Há pouco tempo eu passei em frente ao prédio da velha padaria, que está totalmente deteriorado. E quem passava na rua não entendia bem o que aquela pessoa fazia ali em frente. Indo até o meio da rua e voltando pra calçada. Virando e olhando. Medindo e rindo.
Não imaginavam que eu rememorava com uma espécie de alegria besta e saudosista, a minha pontaria, o lindo voo do sonho, o eco dos palavrões e as risadas.

That's all folks, Douglas

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