quarta-feira, 10 de agosto de 2011

Peba na pimenta


Olhe, pois eu nem tinha começado a cantar, só disse o nome do coco, “Peba na Pimenta”, e um desinfeliz lascou lá do fundo:

— Que que é peba?

Cabra afobado, xente! Nem esperou para ver se aprendia escutando o coco. Só falei o nome, e o abestado já estalou a preaca: “Que que é peba?”.

O cabra tinha esprito ruim, não nasceu no Sertão. Não estou dizendo que todo mundo que nasce no Sertão tem esprito bom. Já nasceu muita gente ruim lá, dos mais piores. Foi. Mas se o cabra tem o esprito bom, ele merece nascer no Sertão.

Esse um, ou tinha esprito ruim ou estava procurando encrenca. Mas eu sou velhaco. Pego no rabo da pergunta, como se fosse uma coisa séria, boto ela no chão e passo a peia. Resolvi explicar para o cabra até ele ficar cansado de entender. E fui:

“Quem nasce no Sertão sabe muito bem sabido o que é peba. Sabe que peba é bicho sertanejo. No sertão tem gente, bicho, planta e pedra. Também tem água, às vezes, mas é pouca. Quando tem, a gente prende no açude.

“Pedra, todo mundo conhece só de ver. Não precisa perguntar o nome. Tem das grandes, como as Rochas, as Penhas, os Penedos e outras famílias; e tem das miúdas, os seixos, que alguns chamam de cascalho. Pedra não anda por vontade própria. Às vezes são empurradas, caem, escorregam, mas andar mesmo, não andam.

“Planta também não anda não. Polo menos eu nunca vi. Elas estão onde estão porque Nosso Senhor Jesus Cristo, louvado seja, botou elas lá quando criou o mundo. Ou ele ou o Pai dele. Mas no Sertão, acho que Deus mandou um anjo para semear aquela plantalhada seca e espinhosa da caatinga.

“Eu até vi na igreja a estáuta do anjo que deve ter feito o serviço. Acho que foi ele, por causa das véstias. Ele andava de alpercata, não usava gibão, mas tinha um guarda-peito. Tinha um facão na cinta, acho que para limpar o caminho no meio da galharia. Ou para se defender, se aparecesse uma onça. Porque suçuarana não respeita anjo. Para ela só existe duas categorias de coisas no mundo, as de comer e o resto. E anjo, para ela, é de comer, porque anda. Anda e tem asa, igual ema, que é comida de onça.

“Esse anjo também usava um tipo de saia, mas era de couro, umas tiras largas de couro. Acho que era para proteger as intimidades. A galhaça da caatinga corta, fura e rasga. No tempo dos anjos ainda não tinham inventado a perneira, isso veio depois. Ele não tinha chapéu de couro. Também, naquele tempo, era só Deus e os anjos, e Deus estava por todo lado. Cada vez que um anjo encontrava Deus, tinha de tirar o chapéu, porque assim é que se faz. Como o anjo podia estar com as mãos ocupadas na plantação da caatinga, era mais fácil não usar chapéu, para não precisar tirar toda hora.

“Entonce, pedra e planta não andam. Quem anda é gente e bicho. Animal também anda, mas animal é como bicho. A qualidade da andança varia conforme os pés. Gente e passarinho tem dois. Onça, cavalo, bode e vaca têm quatro. Cachorro também. Menos o Piaba, de meu compadre Ciço, que só tem três, porque a onça arrancou um de um tapa. Também tem bichos sem pé nenhum, que são a cascavel e as outras serpentes. Cascavel é bicho danado de ruim, que morde só para matar e nem come.

“O peba é bicho da qualidade de quatro pés. Ele tem quatro pés e uma casca que até lembra a saia do anjo da estáuta que falei, porque é feita de tiras. Só que não são tiras de couro, que nem a do anjo, são de casca mesmo, que nem a do tatu. Mas peba não é tatu, é peba. Se fosse tatu, não se chamava peba.

“Tatu tem de três qualidades. Tem o canastra, que é grande e come formiga; tem o galinha, que se chama galinha, mas é tatu. Esse é mais ou menos do tamanho do peba, e come formiga também. E tem o tatu-bola, que é mais pequeno e se enrola todo. Fica que nem um coco, quando o cachorro chega perto dele. Esse também come formiga.

“O peba come formiga, que nem tatu, mas é menos. Ele gosta é de variar. Come macaxeira, coró, minhoca e outras comidas de peba. É por isso que a carne dele é boa. Tem gente que diz que ele come defunto, mas não é verdade. É que as minhocas vão roer a carne do extinto ou do bicho morto e o pebinha vem comer as minhocas. Defunto ele não come não, come minhoca.

“Para caçar o peba tem o jeito certo. Precisa ter um cachorro bom, pebeiro, para encontrar o rastro do peba. Mas tem de ser cachorro velhaco. Se for inhenho, ele vai achar o peba na toca e aí pode chorar a noite toda que o peba não sai e ninguém tira ele de lá. Cachorro velhaco acha o peba fora da toca e dá o aviso. Aí a gente corre, para não dar tempo do peba se entocar.

“Se tiver mais de um cachorro, o peba não corre; ele começa a fazer um buraco no chão para se enterrar. Aí o vivente tem de ficar esperto. O peba finca as unhas no buraco e não tem força que arranque ele de lá. Só sai com boas maneiras. A gente segura o rabo do peba, com o dedo fura-bolo esticado na parte de baixo, e vai seguindo o rumo da cauda do bicho. Logo o dedo encontra o toba do peba. Nem precisa fazer força. Enfiou o dedo, o bicho relaxa as unhas, preocupado com o que está acontecendo lá atrás, onde ele não vê. Aí é só puxar o peba para fora, sem tirar o dedo. Tá pego.

“Se prepara o peba de várias maneiras. Pode cozinhar ou assar na casca, ou tirar a casca antes do preparo, mas o gosto muda. Bom mesmo é soltar a carne da casca, cortar nas juntas, dar uma fritura ligeira e depois voltar para a casca para assar no braseiro ou no forno, tampada com a casca da barriga dele. A pimenta é o principal tempero, porque sem ela o gosto fica aperreado, o peba fica sem personalidade.”

Estando o desinfeliz já bem servido de sabedoria sertaneja, lasquei a picardia:

— E pimenta, Vossa Insolência sabe o que é?

E me arretirei sem cantar.

• Quinca de Tiburço •

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